Rei dos Baixinhos é paparicado por plateias adultas que alimenta suas contradições e o impedem de pensar com independência
Sempre me fascina e me assusta jovens de audiência e influência tentaculares, quando mal sabem de si mesmos, ainda tateiam para aprender sobre o que estão falando com tanta autoridade e tanta ignorância a respeito de suas contradições.
Mais ainda, quando são recepcionados, paparicados e promovidos por adultos que deveriam ensiná-los a pensar direito. Como é o caso de Felipe Neto.
Ele virou uma espécie de Xuxa, a eterna referência de audiência monopolista infantil na TV dos anos 80, que assustava os pais com seus shorts curtos, como foi até recentemente a Kéfera, líder antes dele dos canais brasileiros no Youtube.
É o novo rei, a maior referência dos baixinhos brasileiros nessa nova mídia tentacular, com também brincadeiras de nível pré-primário, só que a partir de bizarrices que recolhe na internet.
Num dos vídeos mais recentes, comenta coisas como glitter agarrado no tapete, maçaneta que se quebra ao girar, refrigerante que estoura no freezer e banheiro inundado.
Gasta boa parte dos 11 minutos de um vídeo de cinco meses atrás para analisar um desenho do Cocô Pirata roubando o navio, em Minecraft, uma das especialidades de seu canal de quase 42 milhões de seguidores, um dos maiores do mundo.
Embora diga que se dirija a jovens, não é possível acreditar que o nível mental da maior parte das brincadeiras que exibe interesse a essa faixa etária.
Suas brincadeiras pós-fraldas estão mais para Xuxa do que para Kéfera, que era mais cerebral para meninas que estão entrando na fase de descobrir sua sexualidade.
Diferente dela, porém, que só falava bobagem quando se metia em política e provocava certo asco nas cabeças ditas bem pensantes, ele vem sendo cercado de adultos embasbacados no meio intelectual, por curiosidade, ingenuidade ou luta política.
Foi arrastado para fora de seu canal infantil e projetado no mundo dos adultos depois que teve a sagacidade de distribuir edições inteiras de livros de temática gay para se contrapor a uma ordem medieval de proibição do prefeito Marcelo Crivella, na Feira do Livro do Rio.
Mais recentemente, ganhou mais projeção, inclusive no Jornal Nacional, por entrar na mira de um delegado carioca que se meteu a convocá-lo em delegacia por exercido direito de opinião contra Bolsonaro.
Acabou em dois Rodas Vivas só no ano passado e numa live recente de 2 horas e meia do grupo de advogados Prerrogativas, onde foi incensado como espécie de cientista político sobre o governo Bolsonaro e filósofo das tendências de manipulação das novas mídias pela direita. Só pela direita.
Por parte dela, onde se diz arrependido amargamente de ter combatido Lula e defendido “o golpe” contra Dilma (“dói a gente ter que dizer ‘fui burro”), ganhou o espaço das manchetes principais do site da Folha de S. Paulo, como espécie de fenômeno político ou acontecimento cultural.
Articulação do discurso
Tem muito a ver com seu conteúdo, de grande apelo para o momento, em que a ressureição política de Lula acenou para uma perspectiva concreta de derrubar Bolsonaro nas urnas e reacendeu o entusiasmo então apagado das esquerdas.
Mas também com o fato de que articula bem. Diferente da outra Xuxa, que reproduzia em rede nacional alguma platitude apressada e preconceituosa repetida na mídia, ele vai além do que ouve.
Cria boas figuras de linguagem para desancar o apoio orquestrado ao governo (“existia os robôs, agora existem os humanos robotizados”) e teoriza bem sobre o imbroglio da manipulação dos algoritmos pelas big techs do Vale do Silício, que está na base das bolhas em guerra que envenenaram perigosamente o debate público.
Seu problema, pela inexperiência, pouca informação histórica e incapacidade de contrapor argumentos contraditórios, é mal perceber seu lugar nesse caos e, também por isso, não confrontar suas próprias contradições.
Ele não percebe, por exemplo, que:
- faz o mesmo que as big techs, a que acusa de só visarem o lucro, com seu cata cliques de bizarrices que nada acrescenta a seu público,
- a manipulação das mentes que deu nos “humanos robotizados”, bem como a existência de gados, não é exclusividade da direita,
- a manipulação de narrativas e o discurso de ódio antecedem à revolução do uso de dados pessoais pelas redes sociais, através de blogs, outros meios e correntes de opinião anteriores,
- tanto quanto a direita, a esquerda se utiliza de mecanismos de manipulação para conquistar manter poder, e que a diferença entre uma e outra varia de dose e competência,
- tanto quanto a direita, a esquerda se utiliza de contas, perfis, canais, sites e outros instrumentos de mão única nas redes sociais, sem hipótese de contraditório,
- tanto quanto a direita, a esquerda tem suas próprias minorias de estimação para esquentar sua plataforma política,
- a onda conservadora que deu no Brexit, em Trump e em governos de extrema direita antecede ao fenômeno de manipulação do uso de dados e tem relação mais funda com o esgotamento de uma pauta progressista que relativizou valores da maioria.
Tende a um raciocínio binário que só reconhece o mau na bolha alheia (nós contra eles) e tende a repetir, mal se percebendo num espelho, as mesmas generalizações e simplificações de que é vítima na sua.
É sintomático que acuse seus adversários de utilizarem um anacronismo, o termo “comunista”, se utilizando de outro que, por falta de informação, mal percebe por também anacrônico, “neoliberal”.
Tem algo de “dissonância cognitiva”, nome que se dá ao que os psicanalistas chamam de incoerência entre as cognições (conhecimento, valores, crenças) e o comportamento. E muito de “paralaxe cognitiva”, sobre a qual teoriza um dos alvos preferenciais de suas análises, o professor Olavo de Carvalho.
Que é a incapacidade de o pensador se colocar dentro do objeto de análise, “o deslocamento entre o eixo da construção teórica e o eixo da experiência real”. Além da dissonância de não perceber o conflito entre o que pensa e o que faz, não percebe que é parte do problema sobre o qual teoriza, a manipulação dos algoritmos para obter resultados de lucro.
Não só no canal que o tornou e a seu irmão Lucas milionários, como nos demais que agencia. Ao passo que mal percebe que esteja em espaços fechados que se contrapõem a outros, também bolhas fechadas, com os mesmos defeitos.
Na sua forma binária de ver o mundo, como é comum nos discursos radicais dos jovens (não os do seu canal, ainda pré impúberes), o governo só quer aumentar imposto, queimar floresta e matar gente.
A impressão ao se ouvi-lo é que, pela manhã, o ministro do Meio Ambiente se senta diante dos assessores e pergunta: “qual pedaço da Amazônia vamos queimar hoje?”
Nessa linha de argumentação, repete o que na sua bolha é padrão. Que Jair Bolsonaro se trata de um “genocida”, no sentido de que já deu um monte de sinais de que pouco importa com a perda de vidas para a pandemia.
Na sua forma de organizar o pensamento, ter negado as evidências científicas, se recusado a comprar vacinas e provocado aglomerações, é sinônimo de “genocídio”, quando um pouco de estudo o ensinaria que o termo está relacionado ao extermínio de uma raça por outra.
É o tipo de raciocínio indutivo, em que intui uma hipótese a partir de premissas que julga verdadeiras. No máximo, dedutivo, em que parte de um generalização (“que mata é genocida”) pra provar suas premissas.
Ensinar a pensar
Quisesse estruturar um pensamento independente para ensinar seus jovens a pensar, daria um google para entender expressão “raciocínio dialético”. Aí, de mão do método, confrontaria sua tese com uma antítese para chegar a conclusão no mínimo mais honesta, mesmo que não quisesse acreditar nela.
“Bolsonaro tem indicativos e provas de quem age como quem não se preocupa com a perda de vidas, mas ele não é um genocida no sentido de que quer eliminar uma população.”
Para isso, porém, mais que estudo, ele precisaria de coragem. E aí entra o velho problema de se ficar refém de grupos, dependente do apoio da patota, como vem acontecendo nos encontros em que vem pontificando alegremente.
Para fazer arrancar aplauso de suas novas plateias, repete o que é aceito em sua bolha e faz sucesso. “Genocida”. Não lhe ocorre, ou não tem a maturidade para perceber que poderia acusar o governo de forma mais correta — e mais dialética —, sem perder aplauso.
Age, ao contrário, com um tipo de espírito de boiada mais sofisticado.
Mais indutivo, quase dedutivo e longe de dialético, dissonante e paralaxal cognitivo, ele arrisca alguns “mea culpa” de efeito retórico, com certa consciência ou esperteza de que, ao mostrar humildade, angaria aura de respeito. Além dos aplausos.
Como no caso do arrependimento confessado em penitência de ter combatido Lula sem reflexo, que ganhou espaço na Folha e confirma a dimensão de sua ignorância. A respeito de si mesmo, de seu lugar no mundo e de sua incapacidade de raciocinar com independência.
Se odiava Lula sem saber por quê (“era o Satanás”), não faz sentido deixar de odiá-lo sem informação suficiente. Está tão errado tê-lo combatido sem informação quanto mudar de opinião a respeito dele sem informação que contradiga a anterior
Lula nada mudou em relação ao que se sabe dele, antes e depois de 2016 e do que Felipe chama de “golpe” na derrubada de Dilma. A novidade foram as informações de desvio processual do seu julgador, Sérgio Moro, sobre as quais seria mais inteligente, ou independente, discutir.
Felipe Neto é na verdade um jovem entrando nas fraldas do conhecimento, de idade mental bem acima dos que ele diverte com bizarrices. E anda deslumbrado com o volume de informações novas que vem recebendo, sem ainda tempo e maturidade para digerir.
Tem demonstrado que é um leitor voraz de boa literatura e provocou um bom debate sobre a inadequação etária dos livros indicados pelas escolas. Mas suas escolhas são sintomáticas de um desespero para absorver tudo, sem necessariamente ordem, prioridade e bom senso.
Certamente que há livros mais relevantes a serem lidos em sua educação teórica, antes dos que listou na mesma live do Prerrogativas. Exibiu quatro livros relacionados a oratória, recebidos em só um dia, para suas “leituras diárias”, e certo orgulho de ostentar a encomenda de dois livros do quem ele chama de “nosso grande pensador brasileiro”, o índio Ailton Krenak.
Que velhos adultos o recebam, o aplaudam, babem por suas simplificações e levem os principais trechos de suas falas para as manchetes, deveria preocupá-lo.
Como acaba aplaudido exatamente nos momentos mais dramáticos em que combate Bolsonaro ou se arrepende de ter batido em Lula, deveria aproveitar para questionar porque está sendo aplaudido e por que não seria se tivesse em bolha alheia.
Se não é capaz de ser ouvido com respeito ou odiado em um lado ou outro, é sinal de que está mais fortalecendo crenças e ideologias sectárias do que construindo pensamento independente que poderia servir à sua missão evangelizadora, digamos, com os jovens.
Esses não são ainda grandes problemas para quem está aprendendo a pensar, mas ficam graves se não aproveita sua experiência para melhorar o serviço que entrega aos jovens que acredita atingir.
Deve achar que sua militância fora do canal, no Twitter, cumpre esse papel. Mas é exatamente ali, entre só adultos que o aplaudem, que consolida suas dissonâncias.
Paulo Prado diz
Muito bom toda a abordagem do assunto.