Nova Verdades Eróticas carrega na pornografia, elimina qualquer resquício de crítica moral e faz crer que prostituição é motor de todas as relações sociais
Verdades Secretas explodiu em 2015 com a história de modelos belíssimas na guerra de vaidades do cenário glamouroso das passarelas, onde é grande a tentação de vender também o corpo para outros usos que não divulgar roupas e acessórios.
Era mote para um erotismo forte, tocado com desenvoltura, algum recato e um arremedo de crítica social num painel em que uma iniciante deslumbrante (Camila Queiroz) se vende a um milionário e uma fracassada (Grazi Massafera) cai nas drogas e na cracolândia.
Nessa segunda temporada, mais teatral que a direção fluída da primeira, não sobra resquício ou esforço de crítica moral. É uma ciranda de sexo ostensivo mal disfarçada no fio fraco da trama central de vingança da filha do empresário (Aghata Moreira).
Se, na primeira, a prostituição era um efeito colateral de um ambiente que opera no plano da beleza e da sedução, nesta ela é a personagem central, motor da engrenagem em que todas as relações se movem, mesmo as de pé, em casa, escritórios e coquetéis de negócios.
A virgem recatada da primeira temporada, já incorporada às conveniências desse mundo de books rosas, não tem mais constrangimento de aceitar, logo nas primeiras dificuldades financeiras, a oferta de um empresário interessado em sadomasoquismo.
A estilista (Deborah Evelyn) se afasta do marido na roda do coquetel para pedir à dona da agência (Maria Medeiros) o contato do novo modelo de peito de gladiador.
— Já estou imaginando esse homem sem roupa diante de mim… Acho que eu morro…
Mais ladina e predadora sexual do que a cafetina de luxo da primeira temporada, a excelente Marieta Severo, do tipo que sobe na mesa para devorar um modelo, a empresária vai ajudá-la com álibis para trair o marido e contratar modelos de programa, no tipo de corrupção inerente ao vício.
Também compra drogas de um traficante que circula nas altas rodas dizendo que sua profissão é como outra qualquer e negocia o sêmen de seu plantel de modelos com uma clínica picareta de fertilização in vitro. Em troca, pede ao médico que dope a mulher do dono da boate com quem está transando.
Outra virgem retumbante do subúrbio está a caminho de entrar na roda para repetir o mesmo calvário da primeira, enquanto tenta proteger a mãe (Maria Luíza Mendonça) que apanha do padrasto que a assedia e a observa tomar banho enquanto se masturba.
Sintomaticamente, nesse mundo fluido e sem fronteiras, é um homossexual delirante no sub comando da agência ( Rainer Cadete, levíssimo) que baila entre os vários núcleos, de modelos a estilistas, iniciantes a empresários, fazendo e vendendo conexões. Enquanto não se diverte às escondidas com o namorado da chefe.
Sim, também há cenas fortes entre homens e até uma de beijo grego já devidamente viralizada, que rivaliza em constrangimento com a da modelo assediada por um grupo de empresários num leilão de porches.
É um mercado de sexo, de corpos belíssimos e sarados em pouca roupa, peitos nus, decotes generosos, conversas à flor da pele, muito vapor em conversas inflamáveis de desejo e um abuso impressionante dos corpos das jovens protagonistas Camila Queiroz e Aghata Moreira.
Quase tudo começa ou termina em torno de alguém, delas principalmente, vestindo ou se despindo, em toques, beijos, sedução descarada ou sexo propriamente dito, no quarto, na cozinha, no escritório ou no banheiro dos coquetéis, como espécie de combustível central dos interesses do jogo.
Aghata confronta Camila num longo diálogo em seu apartamento, vestida num maiô cavado até a costela de pura finalidade erótica. E fecha a cota de erotismo do primeiro capítulo numa dança sensualizada que vai acabar numa transa cinematográfica dentro do carro.
De longe a peça mais exposta nesse meio açougue, rara a cena em que seu corpo não vem antes do diálogo. Seja na boate onde chega de pernas de fora e um adesivo de estrela sobre o bico do seio ou no banheiro de casa, em que conversa com a mãe enquanto se levanta, se vestindo, do vaso sanitário.
Há tanto necessidade de coreografia sexual, que a diretora Amora Mautner admitiu no Fantástico que, lá pelo capítulo 38, ela e as atrizes já tinham esgotado o repertório de gestos e poses nas cenas quentes. É como justifica a opção de ter contratado uma professora de dança erótica.
Nada tenho contra sexo em dramaturgia e, à moda de Nelson Rodrigues, entre ser moralista e roubar galinha, prefiro assaltar o galinheiro mais próximo.
Minhas restrições estão relacionadas a apuro literário, respeito ao público e honestidade intelectual. Que, na falta, confundem valores morais numa sociedade já tão degradada que precisava manter o mínimo de decência.
Até por questões de gosto e eficácia, cenas de sexo só devem acontecer dentro da exigência da história. Sendo um imperativo dela, não há problema algum, como grandes clássicos de alta carga: O Último Tango em Paris ou Império dos Sentidos, no passado, Ninfomaníaca ou Azul é a Cor Mais Quente, mais recentes
Não sendo necessária além da eficiência narrativa, é pornografia, apelação para arrastar cliques, vender ingresso ou assinaturas. Misto de incompetência com esperteza e empulhação do consumidor.
Não vejo problemas que sejam feitos no puro propósito do pornô de luxo como Cinquenta Tons de Cinza, pornográficos como Emmanuelle ou de plena putaria como Garganta Profunda. Desde que passem em sistemas fechados de TV a cabo ou em streaming de assinatura, como é o caso da Globoplay. Onde se compra, se paga e se assiste em hora e local auto determinados.
Tendo todas as reservas de que passem em TV aberta, mesmo em horário mais avançado e mesmo sabendo das responsabilidades e poderes de pais e mães sobre seus controles remotos e seus filhos.
É que se trata de um produto de impacto moral, intelectual e comportamental sobre sensibilidades inadvertidas. Como cigarro e bebidas, cujas implicações idem também levaram a que fossem cancelados das novelas, em qualquer horário.
Pode ser que minha restrição nesse caso esteja contaminada pelo mal-estar nunca superado de ver nas novelas regulares, do horário de 19h para frente, cenas como as de Verdades Secretas.
Minha impressão é de que a Globo não teria problema de exibir a série no mesmo horário de Império, às 21h, onde se abusa quase diariamente do corpo da jovem Marina Ruy Barbosa em cenas de Verdades Secretas com Alexandre Nero.
Até onde já li, não há nada parecido em TVs abertas e mesmo na maioria das séries de streaming, de qualquer país avançado. Até porque, para além de seus fortes e bem vigiados valores conservadores, têm um sentido de gosto dramatúrgico que se degradou por aqui.
Em sendo feitos, produtos do tipo devem ser defendidos honestamente como tal. Autores e diretores devem dizer claramente que estão fazendo entretenimento puro, adequados a seus espaços, apelativos até onde lhes interessam para buscar audiência.
Nunca porém a desonestidade intelectual irritante de se lhes atribuírem um valor social relevante que não têm. Pior, camuflar as segundas intenções numa sociologia de botequim para culpar a sociedade por suas opções.
Na mesma entrevista do Fantástico em que Amora Mautner admitiu fazer transpirar sexo em todos os elementos da cena, o criador Walcyr Carrasco disse que a série é reflexo da realidade.
Replicou o que já dissera sobre novelas em outra série recentíssima da Globoplay, Orgulho Além da Tela, sobre a evolução dos papéis de gays nas novelas globais desde 1970, apoiado por outros dois dos maiores criadores da casa, Aguinaldo Silva e Gilberto Braga.
Não são, não traduzem ou traduzem apenas um recorte de sociedade, manipulado ao jeito de cada um para provocar os instintos certos. Aguinaldo Silva tem o péssimo hábito de dizer em suas entrevistas que dá o que a sociedade pede. Como se não provocasse desejos adormecidos com suas manipulações.
Se a intenção primeira fosse mesmo crítica social, como no caso de Verdades Secretas, as cenas de sexo não derivariam para a quase orgia da montanha russa de corpos semi pelados de puro efeito sensual.
É o mesmo discurso que justifica os finais em muitos casos pouco morais, como foi mesmo o da primeira temporada, em que a virgem violada e depois apaixonada pelo seu comprador opta por uma solução pela qual deveria ter sido punida e não premiada como um casamento de luxo e final feliz.
Que também, como nas cenas de sexo nas novelas do horário mais cedo, são recorrentes nas novelas, desde pelo menos a cena clássica de Vale Tudo, de 1989, que em Reginaldo Faria dá uma banana para o país, fugindo de avião, para se dar bem no exterior com uma estelionatária, Glória Pires.
Que tem a ver com certa engenharia social, em que que pegam uma exceção como se fosse regra, manipulam segundo suas visões do mundo, transmitem como se fosse um painel da sociedade, fazem apologia da normalização e depois dizem que a sociedade pediu. É quase um tipo de hipocrisia.
Nada tenho também contra finais amorais, que podem ter valor moral para denunciar um estado de coisas, como o país apodrecido do final do governo Sarney, em que passava Vale Tudo. Ou se assim entenderem que o mundo das passarelas é, por regra, como aquele país. Que, aliás, piorou bastante.
Mas mão me venham com essa conversa de que ele traduz a sociedade ou se trata do que ela está pedindo nas novelas. Para serem honestos, admitam o que pretendem e acreditam, sem subterfúgios.
Que a realidade expressa no nicho que escolheram, da vida em passarela no caso, é em geral desse tipo de traição e corrupção prostitutiva, onde tudo tem preço fácil de ser pago com o corpo e ninguém é capaz de uma relação de generosidade e honestidade com o outro.
Nos anos 70, um diretor de pornochanchadas, Braz Chediak, se aventurou em adaptações de peças de Nelson Rodrigues para dar lustro intelectual a filmes de puro apelo erótico. Traía as intenções do autor genial que usava as perversões sexuais como base de questões altamemente morais.
Numa das cenas mais fortes e desnecessárias do nosso cinema, de Bonitinha mas Ordinária, a frágil Lucélia Santos se compraz do fetiche de ser currada numa árvore por um grupo de negros enormes, debaixo de chuva. Porque debaixo de chuva, nunca entendi.
Na galeria dos nossos cineastas mais brilhantes e mais honestos, Arnaldo Jabor fez à época uma adaptação honesta de Toda Nudez Será Castigada, em que as cenas de sexo soavam imprescindíveis na história do viúvo conservador que se casa com uma prostituta.
Walcyr e seus discípulos nessa empreitada — os co-autores Márcio Haiduck, Nelson Nadotti e Vinícius Vianna — estão mais para Chediak.
- Publicado no Estado de Minas, em 26/10/2021
Deixe um comentário