Em 2007, Patrus Ananias publicou um texto longo e apaixonado sobre Grande Sertão: Veredas , a catedral de Guimarães Rosa, que, mais de 50 anos depois, continua desafiando críticos e inspirando múltiplos tipos de leitura. Na sua, o jagunço filósofo Riobaldo Tatarana está diante de um sertão transformado que ele não mais entende, misto de “espaços vazios, não ocupados, territórios confusos e difusos, expandido à dimensão existencial das pessoas e das comunidades, que transborda para os campos mais alargados da metafísica e do mistério, metáfora da vida com suas alternâncias de insegurança e paz, obscuridade e discernimento”.
– Sertão é isto, o senhor sabe: tudo incerto, tudo certo…
O que me levou a imaginar o que tem de Riobaldo no dilema em que se meteu desde que aceitou a candidatura inesperada do PT à Prefeitura de Belo Horizonte. De repente, ele está diante de uma cidade que não compreende mais, sem armas e sem discurso. Arrancado do sossego de sua cátedra, depois de algumas derrotas políticas e certamente algumas ilusões sobre a vida pública, ele tem que encarar de novo esse sertão complexo que há 20 anos lhe parecia bem mais simples.
– Vou lhe falar. Lhe falo do sertão. Ninguém ainda não sabe. Só umas raríssimas pessoas – e só essas poucas veredas. Veredazinhas.
Em 1992, quando se candidatou contra o então jovem deputado Aécio Neves, havia um inimigo comum a enfrentar. Após o fim da ditadura e os governos desastrosos de José Sarney e Fernando Collor de Mello, havia um cheiro de podre no ar e um certo esgotamento com o modelo conservador, traduzido na expressão “tudo o que está aí”. Traduzido para Belo Horizonte, significava um discurso antigo de uma casta de políticos velhos – Sérgio Ferrara, Maurício Campos, Pimenta da Veiga – ou jovens de idéias velhas como Aécio, de viés paternalista e assentado em grandes e muitas obras. Poderia ser , como diz em seu texto de 2007, “o território não demarcado, mas real, existente, herdeiro direto das capitanias hereditárias, das sesmarias, do latifúndio, do coronelismo.”
Patrus Ananias vinha com o “algo novo”, uma mistura algo vaga de democracia, participação e solidariedade, que não poderia ser mostrada como obra de areia e cimento e nem inaugurada com placa. Inteligente, sereno, com jeito de padre, ele dourava a pílula num tom meio religioso muito adequado para não assustar a classe média que levaria ainda um bom tempo para engolir o líder do seu partido, o sapo barbudo Luís Inácio Lula da Silva.
– Sertão. O senhor sabe: sertão é onde manda quem é o mais forte, com as astúcias. Deus mesmo, quando vier, que venha armado.
Passados 20 anos, porém, o sertão se embaçou. Seu partido está dentro do “tudo isso que está aí” e todos os seus discursos de solidariedade e preocupação foram absorvidos, processados e até transformados em ação, com mais competência, por seus adversários. Além do mais, como pregar democracia, participação e solidariedade se todos os projetos que traduzem esse espírito, encampados no principal deles, o Orçamento Participativo, foram devidamente implementados e – pelo que dizem – até aprimorados? Como, por outro lado, combater as eventuais deficiências ou o viés paternalista dos programas da atual administração se tudo o que se implantou teve participação de seu partido? Como combater tudo o que foi feito no governo Márcio Lacerda, tudo o “que está aí”, se seu partido acabou de fazer parte dele? Vinte anos depois, seu discurso também parece velho e, dadas as voltas que o mundo e seu partido deram, está inclusive com dificuldades de parecer lógico.
– O senhor tolere, isto é o sertão. Uns querem que não seja: que situado sertão é para os campos gerais a fora a dentro, eles dizem, fim de rumo, terras altas demais do Urucuia. Toleima.
A Belo Horizonte que ele conhecia há 20 anos parece lhe fugir aos dedos e ao entendimento, como no conflito riobaldiano.
– É, e não é. O senhor ache e não ache. Tudo é e não é…
Contra todas as suas certezas, Patrus Ananias parece estar indo para a guerra no Paredão agarrando-se a armas que não são suas. Como o marketing estrangeiro de João Santana, o apoio do ex-presidente Lula e seu passado à frente do programa de combate à fome do governo federal, três trabucos que parecem obsoletos neste sertão, onde a disputa vai se dar pela capacidade de fazer a cidade funcionar com mais eficiência, aberta ao desenvolvimento, com ruas largas e bem cuidadas.
Restaurar sua visão, seu entendimento e alguma capacidade de enfrentar seus adversários com as mesmas armas requer algo maior, absolutamente novo e diferente. Que não parece estar à mão, por mais longe que a vista alcance. Ou um pacto com o demo, como fez Riobaldo, num tempo em que o até o demo parece passado para o lado de lá.
– Viver é – não é – muito perigoso.