A certa altura de seu duro aprendizado de ser rainha ainda jovem, depois da morte precoce do pai, Elizabeth II se ressente de que não teve uma educação teórica que lhe evitasse passar vergonha em conversas com outros chefes de Estado.
Vai procurar a rainha mãe para cobrar o que seria uma falha de educação e ouve que recebeu o necessário para uma futura rainha: saber se comportar, ter bom senso e respeitar a tradição. Não é matéria teórica.
Tudo o que se lhe apresenta então nessa excepcional The Crown, que estreou na semana passada no Netflix, de fato, é um conflito entre os desejos de uma menina em crescimento e o respeito às tradições que dão coerência e estabilidade ao cargo responsável pela ordem no império que já dominou tudo o que havia debaixo do sol.
Não pode morar no castelo que acabou de reformar, não pode manter o nome do marido, não pode impor mudanças na sua cerimônia de coroação, não pode apoiar o namoro da irmã com um capitão da Aeronáutica, não pode escolher o secretário particular mais jovem e com quem tem mas afinidade porque estaria atravessando a fila do modelo de ascensão por antiguidade.
Muito menos seu marido aprender a voar. Sua decisão de fazer aulas de aeromodelismo sem autorização causa um rebuliço no gabinete parlamentar que administra o país, por fim aceita desde que ele se comprometa a não fazer piruetas. (Soa compreensível que importantes membros dessa realeza troquem esse fausto pelo direito de viver, como seu tio, que abdicou em 1935, e a própria princesa Diana.)
Quando recebe na reunião de terça-feira o primeiro ministro Winston Churchill, aprende que terá que aprender sozinha a decidir sobre as coisas do Estado. Não porque o velho já caquético reconduzido ao cargo aos 77 anos não tenha condições de ensiná-la, mas porque, pela tradição e por sua autoridade, ungida por Deus, é ela quem deve saber.
— Minha opinião? — ele devolve meio horrorizado quando ela lhe pergunta o que faria em determinada situação.
Cisão na opinião pública
É um peso brutal para uma menina em crescimento e está longe de parecer algo figurativo. A Coroa da Inglaterra é o centro irradiador de uma autoridade fincada na ordem que emite respeito a que devem se submeter o primeiro-ministro, os políticos e a população, independente da idade e da competência de quem a ocupa.
É uma delícia a cena do capítulo 8, em que ela, depois de muito relutar e do conselho do professor de educação geral que acabara contratando, passa uma descompostura no velho ministro que lhe escondera um infarto.
— Eu sou uma mulher jovem e iniciante no serviço público e nunca esperei dar um sermão a um homem tão mais velho e que tanto contribuiu para o país. Entretanto, o senhor estava na minha coroação e me ouviu jurar solenemente governar os povos do meu reino segundo suas respectivas leis e tradições.
Depois de acusá-lo de colocar em risco a segurança do país e de ter traído a relação de confiança “entre nós e as instituições que representamos”, pergunta se ele se sente suficientemente saudável de corpo e mente para se manter à frente do governo. Antes que ele responda:
— Peço que pense na resposta com base no respeito que meu cargo e minha função merecem, não no que meu gênero e minha idade possam sugerir.
É um pouco mais do que o sistema de contrapesos das democracias presidencialistas, em que o poder do presidente é contraposto pelo do Congresso e vice-versa. Ela é um tipo de espelho imaculado em que os políticos e a população se refletem, sem responsabilidade direta sobre a administração, o dinheiro e a gestão de mecanismos que possam levar à corrupção.
Fica mais claro no também excelente A Rainha, do mesmo criador e roteirista Peter Morgan, de 2006. Ao flagrar a primeira grande cisão da soberana com a opinião pública, no episódio em que ela resiste a dar funerais reais à princesa Diana, o filme deixa entrever que se trata de um poder consentido real em que, independente ou não da pessoa sob a Coroa, mandando ou não mandando, ele é atributo de força moderadora que assegura a continuidade e o respeito à ordem e às tradições.
É como se, restaurada a Monarquia, tivéssemos no Palácio do Planalto uma jovem herdeira dos Orleans e Bragança. E os parlamentares, do lado de lá da Praça dos Três Poderes, lhe devessem obediência e pensassem duas vezes antes de fazer besteira.
Ajuda muito que esse seriado todo redondo de roteiro, cenografia, figurino, fotografia (de um brasileiro, aliás) e escalação impecáveis tenha Claire Foy à frente. Essa menina de 32 anos e um alguns seriados ingleses no currículo faz uma calculada composição de fragilidade e força diante de quem a reverência da tripulação do Palácio de Buckingham e de grandes personagens, como o Winston Churchill excepcional de John Lithgow, faz todo o sentido.
Algo que, cá pra nós, a nossa Paola Maria de Bourbon Orleans e Bragança Sapieha, da linha sucessória imperial brasileira, tiraria de letra.
Ramiro Batista diz
Corrigido. Obrigado pela atenção e a correção.
Pryscila diz
Por nada, querido. Amei o post e a série é incrível! beijo
valdir diz
Caro Ramiro, sei não! Penso que nenhuma das formas de governo já experimentadas daria certo aqui. O defeito está em nós.
laertes duca diz
O que vale na monarquia é o poder natural e real (real enquanto supremo em relação ás instituições) e sobre-humano, nunca relativizado, nem achincalhado como nosso presidencialismo disfarçado (de fachada). Se houvesse respeito á instituição PRESIDÊNCIA DA REPÚBLICA aqueles que a ocupam não viriam a público dizer que “não sabiam de nada”, ou seja, dizendo que na verdade não sabem nem o que acontece em sua volta muito menos em locais mais distantes (ministérios, congresso, estados). Querem se eximir e se vitimizar. São, na verdade, áulicos. Isto tudo, apenas para subverter a ordem natural das coisas, que exige prestação de contas de todos. Enganam o povo e querem enganar-se a sí mesmos. Quem paga somos nós brasileiros. Até quando???
Pryscila diz
Alguns erros no texto. O pretendente da irmã era capitão do aeronáutica. Capitão da Marinha era o marido da Rainha.