Quem disse que, na era das redes sociais e da imprensa superficial, ninguém mais lê texto longo? Depende.
Ana, uma motorista de 30 anos, tocou morro acima, de ré, a caçamba com 90 toneladas de minério — e pneus maiores que ela — que iria salvá-la do mar de lama vindo aos estrondos em sua direção.
Em linha inversa, Vera Araújo de Souza Vilaça, de 64, teve que descer morro abaixo na direção da lama acelerada para acordar o marido Geraldo e voltar a tempo de salvar o vizinho deficiente no topo.
As duas reportagens no site brasileiro da BBC são dois grandes exemplos de como textos jornalísticos podem ser grandes, imensos até, para os padrões de hoje de redes sociais com déficit de atenção e da grande imprensa que as alimenta.
A julgar pelo que o site da BBC Brasil ensina e insiste, há espaço para textos longos, desde que sejam bem escritos e tenham qualidades literárias no sentido em que contem com competência pungentes histórias pessoais.
O rompimento da barragem de Brumadinho deu ao site de alto nível, que não tergiversa com a qualidade, a oportunidade de mostrar que ainda não há melhor forma de dar a dimensão de uma tragédia.
Acima da lama hoje petrificada que fez desaparecer mais de 300 pessoas e grandes histórias, pouco mais da metade encontradas mortas, ele resolveu colher algumas histórias pessoais de quem sobreviveu.
Na melhor tradição do grande texto jornalístico de tom literário envolvente e em ritmo de suspense, que deu grandes romances reportagem, encarna em um protagonista a tragédia que pode ser de todos, de uma comunidade, de um país, de um tempo.
É puro suspense de filme a narração da reação da motorista Ana:
Naquele exato minuto, a motorista dos megacaminhões da Vale olhou em direção às montanhas que circundam a mina Córrego do Feijão e viu uma imensa avalanche emergir do local onde ficava a barragem principal, a apenas 550 metros de onde estava.
“Eu estava de frente para a barragem. Acho que fui uma das primeiras pessoas a ver (a avalanche). Não dava para acreditar”, diz Ana Paula, de 30 anos.
Em poucos segundos, a encosta verde de 87 metros de altura, que sustentava 11,7 milhões de toneladas de rejeito de minério de ferro, cedeu e se transformou em uma onda marrom densa. Tinha mais de 300 metros de comprimento e, em alguns pontos, até 20 metros de altura. Segundo o Corpo de Bombeiros, a velocidade inicial era de 80 quilômetros por hora.
“A onda veio muito rápido. Mas também parecia que estava em câmera lenta. É algo muito estranho, não consigo explicar”, fala Ana Paula, mãe de uma menina de 8 anos e um menino de 3 anos.
https://www.bbc.com/portuguese/brasil-47138258
A reportagem sobre Vera, que havia dois anos subia um morro íngreme para levar almoço para o vizinho inválido no topo, se permite descrições poéticas, sem perder cada detalhe da fuga em direção à lama para salvar a família que sonhava manter um pomar no local pelo resto da vida previram..
Estava um dia bonito, tranquilo, como a maioria dos dias no Parque da Cachoeira, bairro da zona rural de Brumadinho (MG). A paisagem ao fundo era de um vale muito verde, por onde corria um pequeno riacho. O barulho era o da roça: pássaros, galinhas, vacas, minas de água, o vento que atravessava o vale.
(…)
Tanto Vera quanto Geraldo ficaram a salvo, cada um em um ponto alto diferente. De onde estavam, viram a enxurrada da barragem levar tudo o que construíram ao longo de toda a vida.
A lama engoliu a casa, o carro, o pomar, a horta, as 50 galinhas, os cachorros, os documentos, os álbuns de fotos do tempo de juventude e dos filhos crianças. Em segundos, não restava mais nada. Hoje, tudo está abaixo de 10 metros de lama. O vale não existe mais. O terreno foi nivelado pelos rejeitos de minério de ferro da Vale.
https://www.bbc.com/portuguese/brasil-47035740
Difícil que a soma de todos os outros textos da imprensa brasileira, apressada para acumular informações como se acumulam detritos numa barragem a montante, possa dar toda a dimensão de risco, medo e esperança de apenas um desses da excelente repórter Amanda Rossi.
Sigla de British Broadcasting Corporation, a BBC é um patrimônio da Inglaterra, complexo de rádio e TV de respeitabilidade e prestígio como a sua Monarquia. É mantida por uma licença cobrada de todos os súditos, que a chamam carinhosamente de Beeb.
Criada em 1922, implantou transmissões em diferentes línguas, no esforço de propaganda na Segunda Guerra. Em português, estreou em 1938. O site específico para o Brasil é de 1999, pautado e tocado a partir de Londres, com sucursais no Rio e em São Paulo.
Deve ser a forma de manter a equidistância que a separa, geográfica, moral e qualitativamente da imprensa brasileira com seus textos sumários.
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