Livro estupendo prova como que o pós-modernismo pós-guerra operou para desmoralizar o liberalismo e criar as bases da militância universitária por justiça social
A descoberta de dois assassinatos violentos de negros no espaço de 24 horas, na semana passada, pôs de novo em circulação o conceito de “racismo estrutural” como parte da explicação de por que se bate e se atira em negros por sua condição social.
Vem de “estrutura”, de uma sociedade que se estruturou em valores hierárquicos em que pessoas negras são vistas como inferiores. No caso do Brasil, mais grave, associadas a pessoas provenientes de áreas mais pobres, onde estão os maiores índices de criminalidade.
É variação de uma injustiça social geral, também estrutural, maior, que também provocaria crimes cotidianos contra outras consideradas minorias, mulheres, imigrantes, gays. Seriam tratados como inferiores por uma sociedade que se organizou em torno do privilégio de homens brancos e heterossexuais.
Evitar os preconceitos e os crimes deles derivados passaria por “reestruturar” a sociedade. Como não é possível fazer isso sobre séculos de sedimentação cultural, uma enorme militância chamada “identitária” ganhou corpo pregando a transformação dela através da fala. Para que através dela se mude a forma de pensar e, em consequência, de agir em relação a ela.
Por isso você vem ouvindo e lendo nos últimos anos, com frequência cada vez maior, entre outras, expressões como politicamente correto, reparação histórica, apropriação cultural, linguagem neutra, lugar de fala, cancelamentos.
São atalhos para tentar corrigir injustiças “estruturais” seculares. Já operaram mudanças na forma de falar, escrever e pensar (antes, eu não teria escrito “pessoas negras” no lugar do também correto “negros” para designar coletivo de negros e negras) e influenciaram mudanças concretas de comportamento e em políticas públicas e privadas.
Cotas raciais e sexuais na administração pública e nas artes, derrubada de monumentos históricos, escalação de homens trans em competições esportivas femininas, separação de banheiros para as variações gay, e linchamento virtual de figuras públicas são alguns de seus resultados concretos visíveis.
Eles expandem a sensação de que tudo se inverteu de uma hora para outra, de que tudo que era sólido se desmancha no ar, numa velocidade de pé na porta que analisei neste artigo sobre a pressa dos movimentos LGBTQIA+.
A coisa parece ter se agravado recentemente e em muito pouco tempo. Mas podemos estar vivendo o ápice e talvez a decadência de um processo que começou depois da Segunda Guerra, teve uma reviravolta determinante depois dos anos 80 e acabou por se firmar como uma das ideologias menos tolerantes e mais totalitárias desde o declínio do comunismo e o colapso da supremacia branca do colonialismo.
Como está brilhantemente documentado, analisado e provado no recente e estupendo Teorias Cínicas, da pesquisadora de textos medievais sobre mulheres, Helen Pluckrose, e do doutor em matemática James Lindsay. Tiveram repercussão antes ao engendrar com o filósofo Peter Broghosian falsos artigos científicos para provar que era possível publicar qualquer bobagem identitária em respeitáveis revistas científicas contaminadas pela militância que substituiu a pesquisa séria na universidade.
Leia: Artigos falsos em revistas científicas expõem militância nas universidades
Eles demonstram aqui como a falência dos princípios basilares da civilização ocidental — o liberalismo, a razão iluminista e a dúvida científica —, depois das duas guerras mundiais, abriu caminho para o relativismo pós-modernista que fez a cabeça politicamente correta de uma geração de professores e pesquisadores a partir dos anos 80 e produziu as teorias cínicas que nos trouxeram à cacofonia militante atual.
A Teoria Pós-Colonial, a Teoria Queer e a Teoria Crítica da Raça eliminaram e subverteram as fronteiras geográficas, sexuais e sociais em três construções de alto impacto que se propunham substituir em forma de ideologia os pressupostos que empurraram o desenvolvimento político, econômico e social do mundo ocidental desde o descobrimento: liberdade individual, igualdade de oportunidades, inquirição livre e aberta, liberdade de expressão e de debate.
Começaram a desmoralizá-los nos anos 50, pelo niilismo radical e não menos influente dos filósofos pós-modernistas — Michel Foucault, Jacques Derrida, Jean François Lyotard, Gilles Deleuze e Felix Guattari — a partir da pregação de que não foram capazes de evitar as grandes tragédias da humanidade, como as duas maiores guerras que haviam acabado de presenciar.
Eles e seus discípulos, espalhados pelas cátedras mundo afora, pregavam que nada mais fazia sentido. Que toda forma de organização do pensamento e da sociedade tradicionais eram mais ou menos uma fraude que criou e consolidou sistemas injustos de dominação e privilégio para dominadores machos, brancos e heterossexuais.
O pós-guerra foi também o do surgimento da produção em massa, da apologia do consumo e da descoberta dos mecanismos de manipulação da publicidade. Juntos, também contribuíram para a impressão de um mundo artificial, hedonista e consumista, campo fértil para a apologia niilista contra os valores ocidentais, encapsulados na ideia geral do capitalismo como grande leviatã.
Primeiro grande negacionista, Michel Foucault questionou todas as estruturas de poder, inclusive a Ciência, como construções sociais a serviço da opressão dos privilegiados. Baseava-se na prova concreta de que ela havia legitimado o colonialismo, ao dar base científica à ideia de inferioridade dos povos dominados, negros e índios.
Ao mesmo tempo, para reduzir a importância das super estruturas opressoras, consolidou a ideia revolucionária e determinante de que o poder não vem de cima, como o conceito de exploração capitalista em Marx. É permeado pela sociedade que o internaliza e o alimenta. Como a mulher que reproduzia como natural a sua submissão ou o negro da beira de praia que ajuda hoje a espancar um imigrante negro, porque incorpou os preconceitos da maioria branca.
Com a desmoralização das estruturas de poder e dos valores tradicionais — religião, família, democracia e, sobretudo, a Ciência —, dilui-se, dissolve-se e dissemina-se a ideia de que a realidade objetiva não pode ser conhecida. E, neste sentido, o estudo da linguagem e seus jogos se torna fundamental para desconstruir verdades e preconceitos estabelecidos.
Ao ponto do conceito algo maluco — e paradoxalmente o mais influente — de que a realidade não mais existe tal como a conhecemos e que os cientistas desde sempre procuraram provar por método científico de intuição, comparação e comprovação. Ela passa a ser entendida como construção social pela linguagem dos opressores e como tal deve ser combatida.
É a base profunda e incontornável que deu no politicamente correto, que derivou para a linguagem neutra contra o que chamam de concepção binária da sociedade. As categorias conhecidas, como homem e mulher, masculino e feminino, passam a ser vistas como construções sociais consolidadas no interesse do privilégio da maioria masculina, branca e heterossexual.
Não se pensa mais nos princípios universais dos direitos humanos, mas em sistemas binários de poder. Não no bom e velho liberalismo, inclusive feminista, da busca universal de direitos, liberdades e oportunidades iguais. Que havia produzido, com seus defeitos e virtudes, as maiores conquistas da humanidade, como, depois dos movimentos por liberdade dos anos 60, a equiparação pelo menos legal de mulheres, negros e homossexuais.
A partir dos anos 80, porém, o excesso de niilismo tinha derrubado todos esses valores como ferramentas de cristalização dos privilégios e nada havia colocado no lugar. Tinha chegado a tal ponto de desconstrução, que diluíra todas as categorias e todas as causas pelas quais lutar. Se tudo não faz sentido e a realidade objetiva não existe, que lutas podem ser travadas?
É aí que Pluckrose e Lindsay elaboram a sacada de que, a partir daí, na maior reviravolta do processo, elas precisavam criar algo politicamente acionável. Que causa poderia ser acionada, já que todas estavam resolvidas? Como o “penso, logo existo” de Descartes, de 400 anos atrás, precisavam de algo acionável politicamente como “experimento a opressão, logo existo”, ironizam os autores.
Como todo o desmonte pós-modernista não havia resolvido também o problema da injustiça social produzida pela opressão que se empenhava em denunciar, os cruzados intelectuais perdidos no deserto niilista do pós-modernismo inventaram o que os autores do livro chamam de uma religião: a Justiça Social, com iniciais em maiúsculas, para delimitar a sua intenção de ação política, contrária à justiça social, em minúsculas, propriamente dita.
Tão poderosa quanto as grandes religiões seculares, a Justiça Social veio substituir as tradicionais que formaram o homem moderno: cristianismo, marxismo, ciência, liberalismo filosófico e ideia de progresso. Como se a desesperança tivesse encontrado uma nova confiança “que se tornou uma convicção firme associada a adesão religiosa”, escrevem os autores.
Vinha com três grandes braços, seitas, as três teorias que se complementavam e confluíam para dissolver as fronteiras da opressão e dar voz aos oprimidos por elas marginalizados. Descolonizar tudo e dar o mesmo status para seus valores e seus conhecimentos. De forma que seus ritos, crenças e costumes se equiparassem ao saber científico secular do Ocidente. A filosofia ocidental passava a ser suspeita.
Se a Teoria Pós Colonial vai diluir as fronteiras geográficas para dar o mesmo status de conhecimento científico aos costumes dos dominados, a Teoria Queer e a Teoria Crítica da Raça vão diluir as fronteiras sexuais e raciais para dar o mesmo poder de fala a gays, negros, judeus e outras minorias não brancas e, como dizem, binárias.
Delas derivaram categorias e sub-categorias marginalizadas por diferentes condições: raça, sexo, classe, sexualidade, identidade de gênero, religião, status de imigração, capacidade física, saúde mental, tamanho do corpo.
Embora tenham nascido do movimento feminista liberal clássico que se dissolveu no desconstrutivismo e tenha se reforçado pela contribuição de uma miríade de pesquisadoras feministas pós-modernas, foi a Teoria Crítica da Raça que mais contribuiu para a diluição que criou outra miríade de sub-categorias e redundou nas pluralidade de gêneros, cada um com seu poder de fala e sua concepção de direito.
Por obra e graça da feminista negra Kimberlé Crenshaw e sua metáfora famosa de um atropelamento na intercessão de um sinal de trânsito por vários carros. A mulher negra, gay, pobre, latina, muçulmana e desempregada, por exemplo, seria atropelada por sete carros da opressão hétero branca cristã ocidental. Se ainda fosse gorda, seria atropelada pelo oitavo carro. Se também deficiente, por um nono.
Leia: Mulheres biológicas começam a reagir ao novo feminismo que as nega
Somadas as diversas categorias femininas, raciais e de gênero, com a do movimento gay reunida na sigla LGBTQIA+, chegou-se à multiplicidade de identidades sobrepostas ou interseccionadas. Numa cacofonia de vozes por múltiplas e infindáveis reivindicações que o bom e velho liberalismo daria conta como seu princípio universal de liberdade e igualdade, se não tivesse sido desmoralizado por interesses ideológicos quase religiosos.
Todas com o mesmo princípio dos sacerdotes da era Foucault, de uso da linguagem para reequilibrar equações injustas de poder, uma vez que a realidade é discutível, a verdade objetiva não existe e as categorias são constructos sociais para fortalecer as estruturas de opressão, dominação ou discriminação.
Helen Pluckrose e James Lindsay dividem o espaço/tempo que nos trouxe ao atual estado de coisas em três fases: a altamente desconstrutiva do pós-modernismo, entre os anos 60 e 80; a do pós-modernismo aplicado em que se busca uma causa política e consolida a religião da Justiça Social, dos 80 a 2000; e a do pós-modernismo reificado a partir daí, em que a nova religião ganha status de Verdade incontestável.
É quando começa a dar frutos palpáveis no debate público. É transposta da academia para a vida real. O livro é cheio de exemplos acachapantes e pavorosos de cancelamentos, que vão da derrubada de monumentos a linchamentos virtuais históricos, da censura a obras artísticas e espetáculos como não se fazia desde os regimes totalitários mais conhecidos, nazismo e comunismo.
Também quando começam a ficar notáveis suas distorções, injustiças e contradições, iguais ou maiores do que as que vieram para combater. Incluindo seus primeiros conflitos internos, com nome e sobrenome: a trans-excludência, por exemplo, aplicada a feministas que têm sentimentos ou atitudes em tese transfóbicos contra trans ou legislação de equiparação.
Ao contrário de promessa de desconstrução e abertura para a pluralidade, criou-se o obscurantismo de isolar o conhecimento em categorias estanques. Como só negros podem falar por negros ou interpretar ou estudar negros, por exemplo, chegou-se à excrescência de uma epistemologia negra contra a violência epistêmica branca. Estudos acadêmicos de raça negra só devem ter citações de cientistas negros. Idem, mulheres e gays com suas respectivas epistemologias.
A ideia de que toda opressão requer um polo macho, branco e heterossexual criou uma pane e um bloqueio na cabeça da militância, que não entende como que um preto possa ajudar a bater noutro preto, como costuma ocorrer nas ações violentas da polícia carioca e ocorreu no caso do congolês espancado.
O livro documenta conflitos de opressão de liberais contra gays no terreno dos dominados, em Uganda e no Paquistão, que, na falta de um polo branco ocidenal opressor, não mereceram atenção do movimento identitário mundial. Mais ou menos o que ocorreu no caso das meninas afegãs proibidas pelos dirigentes afegãos de frequentar escolas. Como não havia um opressor ocidental branco, macho e heterrossexual, os movimentos identitários demoraram a reagir. Só o fizeram quando o descobriu em Joe Biden, culpado por retirar o exército americano do país, antes da hora.
O grande estrago, porém, ao ponto do irreversível, está na educação. A universidade trocou o método científico de busca da verdade, através da inquirição e da comprovação isenta, pela militância, a “Verdade Segundo a Justiça Social”, como dizem os autores.
O filósofo Peter Boghossia foi demitido da Portland University depois de ouvir do reitor o disparate de que o papel da universidade não era produzir conhecimento, mas fazer justiça racial. Com os autores parceiros na denúncia da fraude dos artigos falsos, lidera um movimento para criar uma universidade como deveria ser e pode se tornar um anacronismo nesses tempos: livre.
Não são porém as deturpações, injustiças e paradoxos que tornam as teorias cínicas. O que elas têm de mais cínico, entre tantas coisas, é a ideia de que a sociedade é culpada, sempre, e que não podem ser contestadas.
A culpa social fica mais evidente em outras duas, delas derivadas, que se incumbiram de defender a voz de gordos e deficientes, outro vasto campo de pesquisa e estudo surgido da ideologia. Chega ao ponto de pregar que o doente mental não deve se tratar ou o gordo emagrecer, porque não se trata de problemas individuais de saúde. Mas de que a ideia de emagrecimento e corpo saudável é uma imposição construída pela sociedade opressora.
Deficiência ou gordura deixa de ser problema do indivíduo, mas de um conjunto de grupos marginalizados identitários com a legitimidade de seu próprio conhecimento. Um de seus principais teóricos, Joseph Shapiro, rejeita a ideia de que médicos são mais qualificados que o próprio indivíduo para definir a doença. E Dan Goodeley, que deficientes devem rejeitar a cura porque “condições materiais incapacitantes não podem ser dissociados de homofobia, capitalismo, imperialismo e patriarcado”.
A resistência à contestação vem no suporte de outro jogo de linguagem que atribui a divergência a ignorância ou a resistência em aderir. Quem ousa duvidar da nova Verdade segundo a nova religião da Justiça Social estaria fazendo o jogo do opressor.
— A discordância costuma ser considerada, na melhor das hipóteses, uma incapacidade de engajamento correto com o estudo acadêmico, como se o engajamento devesse implicar aceitação e, na pior, uma falha moral profunda — escrevem os autores. — Esse tipo de alegação é mais familiar à ideologia religiosa: se você não acredita, não leu o texto sagrado adequadamente ou apenas quer pecar.
Muito Foucault para o meu gosto. E altamente obscurantista.
> Publicado no Estado de Minas, em 15/2/2022.
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