Tancredo de Almeida Neves tinha cuidados quase doentios para evitar julgamentos que pudessem conspurcar sua biografia. Foi de vereador a presidente morto na véspera da posse, pisando em ovos numa jornada por todos os postos relevantes da vida pública, porque conhecia bem as maldades da natureza humana.
Quando a companheira de cinquentanos, dona Risoleta, sugeriu levar os tapetes da família para o Palácio da Liberdade, onde tomaria em posse em janeiro de 1983, desaconselhou, temendo o risco de ser mal interpretado no futuro:
— Ninguém vai ver entrar, mas todo mundo vai ver sair.
Num tempo em que os gravadores do tamanho de um tijolo não cabiam no bolso, desconfiava dos telefones.
— Telefone é só para marcar encontro. E não ir.
Por conta de sua fama de político antigo, da cepa de luminares como Milton Campos e Juscelino Kubitscheck, que gostavam mais de articulação do que de fazer negócios, é volta e meia citado como exemplo moral quando seu neto famoso cai em derrapadas de quem gosta mais de negócios do que de articulação.
Eu mesmo já escrevi sobre esse caso do tapete quando ele caiu no descuido de mandar asfaltar um aeródromo com dinheiro púbico para chamar de seu, perto da fazenda da família.
Nesta semana em que foi gravado pedindo dinheiro, e não votos, ao dono da JBS, que pode pôr fim à carreira que o avô lhe delegou, fez sucesso o meme em que o velho aparece ao lado dos netos famosos — um gravado e a outra presa — fazendo o papel de avô impoluto com netos traquinas:
— Risoleta, vem ver o que os meninos aprontaram — diz a legenda.
O ótimo Josias de Souza, do Uol, lembrou ontem a frase que bem caberia ao neto, se tivesse mais cuidado, quando se encaminhava para a sexta das sete cirurgias que não conseguiram domar as bactérias cruéis que puseram fim a tudo que havia construído numa carreira penitente de 40 anos de vida pública:
— Eu não merecia isso.
Boa vontade da imprensa
Interessante, grandes jogos de palavras, mas é um tanto temerário acenar para aquele pedaço de história como se fosse um tempo de homens puros de um política de alta classe.
Tancredo Neves havia enfrentado Paulo Maluf, um tipo de diabo pintado pela imprensa como outro sinônimo de corrupção, em vista de seus meios pouco ortodoxos de aliciar deputados. Para isso, porém, se aliara a outros diabos menores mas de passado também discutíveis, do então PFL: José Sarney, Aureliano Chaves, Antônio Carlos Magalhães.
Para ser eleito por via indireta no Colégio Eleitoral com 480 dos 660 parlamentares, dois meses antes, usara mais que lábia e malabarismo articulatório.
Não se registrou que comprava deputados em dinheiro vivo, mas contava com argumentos mais, digamos, sensíveis do mundo empresarial para convencê-los por outros modos. Suas companhias inseparáveis de articulação de bastidores naqueles dias eram o industrial Antônio Ermírio de Morais e o banqueiro Olavo Setúbal Setúbal
E boa vontade da grande imprensa. Naqueles tempos em que todas as forças políticas importantes estavam todas de um só lado contra os militares, inclusive o PT que não votou mas não atrapalhou, a campanha indireta foi como a da eleições diretas que havia mobilizado o país oito meses antes.
Nela havia um diabo, Maluf, cujos atos e correligionários eram vasculhados com lupa. E um santo, Tancredo, cujos passos e alianças eram vistos como missão.
O que, tudo somado, significa que não se trata em essência de grande diferença entre os políticos de ontem e de hoje, mas de uma questão de escala e de vontade dos veículos de comunicação, hoje empurrados por uma rede social sem rosto.
De uma classe política que avançava ainda na coalização com os empresários de nosso capitalismo estatal, que vinha desde que os empreiteiros entregavam menos caminhões do que o contratado nas obras de Brasília.
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