Ao incorporar competências de outros poderes e do Legislativo, Supremo absorve também as patranhas legislativas de condenar politicamente num processo falho
Há um bom tempo, o STF vem legislando desavergonhadamente, para suprir omissões do Congresso. Ampliou as possibilidades de aborto, o conceito de família e a lista de categorias consideradas racismo além das cinco constitucionais.
Livre, leve e solto, foi gostando da coisa e suprindo/suprimindo as outras instâncias também do Judiciário, como na anulação de cabo a rabo de tudo o que se decidiu na Lava Jato, independente das provas e dos tribunais anteriores.
A ponto de, em 2019, avocar todas as competências do sistema judicial ao se atribuir o papel de investigador, acusador e julgador de si mesmo no inquérito das fake news tocado pelo relator indicado (não sorteado, como deveria) Alexandre de Moraes.
Corroborado por unanimidade numa sessão de plenário, deu uma espécie de salvo conduto para que outros ministros saíssem cometendo arbitrariedades contra tudo o que pudessem entender como excesso de opinião.
Luiz Roberto Barroso e subordinados no TSE fizeram um carnaval contra donos de sites, contas e canais de plataformas de redes sociais de direita. Cortaram palavra e patrocínio de quem não era candidato e nem estava em época de campanha eleitoral.
Natural que, como o poder corrompe e o poder absoluto corrompe absolutamente, sem oposição e com a adesão alegre da grande imprensa, Suas Excelências foram ficando mais prepotentes e descuidadas de embasar muito bem suas decisões.
Ao incorporar as competências de outros poderes, absorveu do Congresso, por osmose, as suas patranhas políticas. Como os deputados julgam politicamente, independente do grau das acusações, sem dosimetria, o uso do cachimbo fez as Suas Excelências do Supremo entortarem a boca, na mesma simetria (para usar uma palavra da moda).
Segundo os melhores juristas, o processo de prisão do deputado Daniel Silveira é sabidamente cheio de erros e arranjos para mantê-lo preso.
Fora o fato de que a vítima investiga e se julga (pediu à PGR para denunciar depois e prende-lo), não havia flagrante e nem se podia impor-lhe multas e punições se não fosse por prisão preventiva. Preventiva, não caberia, porque deputados só podem ser presos em flagrante e por crime comum, não de opinião.
Como o deputado de fato cometeu crime de apologia de crimes, sem flagrante, da mesma forma de outro preso pelo mesmo Alexandre de Moraes no mesmo inquérito (Roberto Jefferson), o STF fez o tipo de arranjo político que é da natureza do Congresso e condenável em juízes.
Aproveitou partes do que eram indícios de crimes reais contidos no vídeo pavoroso que ele fez contra autoridades, instituições e o sistema democrático, e desceu a mão pesada sem alguns passos iniciais recomendáveis: notificação, intimação, prazos de defesa.
Fez o que acusam Sergio Moro de ter feito contra Lula, no caso da condução coercitiva que poderia ter sido antecedida de intimação ou no da retirada de sigilo de documentos e conversas em hora oportuna, para atrair efeito midiático.
Ou o que fez o Congresso contra Dilma Rousseff: com base em manobras de pouca relevância que não colocavam em nenhum risco a República, os deputados usaram sua dosimetria particular que leva em conta muito mais as circunstâncias (era conveniente cassá-la) do que o crime em si. Política, enfim.
Como fazem Suas Excelências do Supremo. A missa de consagração da punição de Daniel Silveira desta quarta-feira, com o único voto contra e um tanto vexaminoso pela subserviência ao Planalto de Nunes Marques, deve um indiscutível propósito político de mandar recado aos aliados maluquetes de Jair Bolsonaro.
Não avançaram, porém, sem que que tivesse havido, e muita, leniência do outro lado. Não avançariam se o Congresso fizesse sua parte.
Se fosse julgado seriamente pelos deputados, com base nas mesmas declarações e no mesmo vídeo, Daniel Silveira deveria mesmo ser cassado. Mesmo se considerando a sua dosimetria particular de relevar crimes, mesmo pesados, às vezes.
Tivessem os deputados se manifestado na primeira hora em que Daniel Silveira foi preso em flagrante, rejeitando a prisão e avocando o caso para seu Conselho de Ética com vistas a cassação, a intervenção do STF seria suprimida. Assim como estabelecida a autoridade do Legislativo.
Mas a Câmara fez neste o que já fez em vários outros casos para proteger seus pares de crimes piores. Protelou. O presidente Arthur Lira ainda pediu ao presidente do Supremo, Luiz Fux, uma decisão colegiada que lhe desse respaldo interno para a cassação.
Fux demorou a agendar e a coisa foi se complicando. Agora, terá que ir a reboque, pagando o preço subserviente de confirmar a cassação ou terminar a legislatura sem cassá-lo. Daniel ainda pode entrar com recursos até o chamado “trânsito em julgado”, definitivo.
Sintomático que, ontem, durante a sessão que confirmou as punições, Arthur Lira tenha consultado o STF sobre o que fazer em casos em que os ministros decidam por cassação do tipo, referindo-se a um caso de 2018.
Minha resposta é que não deveria ter consultado, assim como é um vexame que deputados e senadores vivam batendo às portas do STF para enfrentar disputas dentro do Congresso que evitam pelos próprios meios. Submetendo-se a ele.
Se agissem rápido em caso de desvios de seus pares e de tantos temas urgentes à espera de regulamentação, cobrados pela sociedade, não dependeriam de que outros poderes fizessem o serviço por eles.
Há um bom tempo que o STF vem suprimindo competências alheias, mas outro, ainda maior, em que os deputados não decidem a tempo o que deveriam.
> Publicado no Estado de Minas, em 21/4/2022.
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