Por quase 48 horas, das 19h20 da quinta-feira em que entrou no Sindicato dos Metalúrgicos do ABC às 18h45 do sábado em que se entregou à Polícia Federal, Lula pautou a grande e a pequena imprensa, as redes sociais e as conversas por meios tradicionais, em casa ou no bar.
Nem precisava do aparato que seus fiéis montaram para armar o palco: caminhão de som, fotógrafos, cinegrafistas, drones de tomadas aéreas.
Velho manipulador do timing dos órgãos de comunicação e da opinião pública, montado nos dons de hipnose sobre a sua claque, sabia que teria vasto campo a explorar na cobertura integral de todos os veículos, a começar de seu alvo preferencial, a Rede Globo.
Não fosse refém da satanização da emissora que lhe dá frutos desde seu primeiro programa de TV, a Rede Povo, deveria pedir reverência de seus militantes a ela pelos grandes serviços prestados involuntariamente à sua ascensão.
Muito menos por seu aparato que por seu feeling, passou todo o tempo transmitindo a imagem de que estava vencendo uma batalha perdida. Em nenhum momento, a cúpula da Polícia Federal e do Ministério da Justiça, alinhada com Sérgio Moro em Curitiba, perdeu o pulso da situação, mas foi ele quem vendeu à sociedade a ideia de que estava no controle.
Quando arrancou no meio da multidão, a pé, sabia do risco que não corria. Sabia que não podia mais esticar a corda que esticara ao limite a cada passo da negociação. Talvez imaginasse que sairia melhor assim — e a tempo — no Jornal Nacional.
Propaganda política
Seu ex-assessor e amigo próximo Ricardo Kotcho, que o acompanhou das caravanas de candidato nos anos 80 às vigílias nas duas últimas noites livre, escreveu que ele operou essa última guerra de propaganda como operava as grandes greves que comandou e assustou a ditadura, nos finais de 70 e início dos 80, no ABC.
Onde, como se sabe, ouvindo todo mundo e monopolizando a decisão sobre os próximos passos, revelou enorme talento para transformar derrotas em vitórias, vender perdas como ganhos para a peãozada que lotava estádios para ouvi-lo em silêncio.
Em quarenta anos desde então, saltou de seu nicho operário para a militância em favor de todas minorias, quando veio o governo civil e a Constituinte de 1988, e acabou por confundir sua história com as dos movimentos sociais que ganharam espaço a partir daí e incorporar como nenhum outro político brasileiro as crenças e fantasias de uma geração.
Contribuiu para isso também o manejo de grandes intelectuais que só conheciam operário de greve nos jornais e procuravam à época uma alavanca para ancorar suas lutas contra o regime. Encontraram-na naquele hipnotizador de multidões que conseguia alinhavar reivindicação salarial com redistribuição e renda e afirmação política.
Foram todos, da universidade aos jornais e aos partidos, manejando os cordões que foram arrastando década de 80 afora jovens e velhos nas escolas, nas igrejas, nos sindicatos. Juntando mesmo entre eles vozes divergentes no mérito e no método, como, para ficar em dois exemplos semi antagônicos, Fernando Henrique Cardoso e José Dirceu.
Há poucos dias, quando ouvi uma intelectual sofisticada como Márcia Tiburi professar na missa de réquiem por ele no Leblon, que era preciso dar um passo atrás em busca de seu significado, quase em tom de reza, entendi que havia uma motivação emocional mais funda que o relativismo moral que faz vista grossa a seus pecados.
A uma parceira azeitada sua com José Dirceu, atribui-se a maquinaria de articulação e expurgos que transformou o PT em potência e fortaleceu todos os satélites à esquerda. Aparelhou todas instâncias de governo e instalou essa democracia subvertida em que vivemos, em que a maioria deve ceder à vontade das minorias e, no limite, meia dúzia de militantes com pneus queimados subjuga populações inteiras.
Herança eleitoral
Livre e sem Dirceu, depois do Mensalão, Lula ficou mais forte e insubstituível que nunca.
Preso, porém, as deixa órfãs e no mesmo ponto de partida em que estavam há 40 anos, precisando de uma ideia, uma alavanca e sobretudo de alguém aglutinador como ele para lhes dar rumo.
Não por acaso, voltam a pipocar artigos e entrevistas de pensadores da esquerda sobre reconstrução, alternativas e a necessidade de repensar sua trajetória, recorrentes a cada vez que parecem se sentir no fundo do poço.
Nas amarelas de Veja desta semana, seu principal pensador marxista, Ruy Fausto, defende “uma esquerda nova, voltada às origens da crítica ao capitalismo, sem rompantes autoritários ou populistas”. É uma esquerda das minorias, de Marielle Franco, e não de Fidel Castro, Lenin ou Hugo Chávez, segundo diz.
“Há no Brasil uma classe média não reacionária que está em busca de um projeto. Só que é gente desorganizada, que não está necessariamente filiada a nenhum partido. A votação expressiva de Bernie Sanders nos EUA prova que isso acontece também fora.”
Nos últimos dez anos, houve pelo menos dois momentos em que ensaiaram o mesmo, depois do Mensalão e ao cabo do arrastão da Lava Jato que quase dizimou o PT. Em todas as duas, Lula retomou o controle, e, na falta de substituto ou oposição, adiou os projetos de reestruturação.
Desta vez, ele não estará por perto para obstruir as propostas de mudança e nem também para dar novo rumo.
Difícil imaginar que vá surgir alguém com seu talento para galvanizá-la e ilusório que, sendo ele mesmo na falta de alternativa, terá o mesmo peso depois da prisão.
Mesmo que vá cumprir suas penas em casa, terá as asas cortadas pelas restrições legais que se impõem a presos em reeducação para reinserção na sociedade.
Mesmo que, na melhor das hipóteses, consiga registrar sua candidatura sob liminar, terá que adotar um discurso de cordeiro manso, aglutinador, isento de ódio e revanche, todo contrário à retórica que construiu para aglutiná-las.
Com ele, elas devem ficar caladas. Sem ele, devem chegar às próximas eleições dispersas e menores. Seu provável substituto, Fernando Haddad, e seus satélites Manuela DÁvila (PCdoB) e Guilherme Boulos (PSOL) vão disputar uma herança em frangalhos.
O PT, como eles e sem ele, deverá voltar a ser nanico.
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