O primeiro mandamento de quem quer aprender a escrever bem é ter um livro de cabeceira que ame.
É daquele tipo a que você quer voltar sempre, reabrir em um trecho como se fosse da primeira vez, porque sabe que descobrirá algo novo a cada releitura.
Você vai se encantar de novo com seu fraseado e se perguntar como ele conseguiu arrebatá-lo dessa forma, fazê-lo escravo de sua atenção até a última linha.
Que recursos usou, que maquinaria infernal se utilizou para capturar o seu interesse desde a primeira linha e mantê-lo acesso parágrafo a parágrafo, capítulo a capítulo?
Aconteceu comigo a vida inteira.
Recentemente, me instigaram a publicar na minha página no Facebook os sete livros que me marcaram, um por dia.
Minha memória sentimental não me levou ao tipo de escolha muito comum nessas situações, a daqueles catataus de grandes dramas épicos.
Não, não me remeteram aquelas sagas de personagens inesquecíveis que nos mantém em suspenso por dias no aprendizado sobre o ato de existir.
Me remeteram aos livros que me deixaram inquieto sobre a competência do escritor para manipular a narrativa de forma a não me deixar fechar o livro.
Houve outros, mas foram os sete que estiveram por um tempo em minha cabeceira, a me cobrar todas as noites uma olhada para entender por que o escritor me puxava para ali.
Por isso seus autores têm em comum, não o fato de contarem grandes históricas, embora também, mas de escreverem muito bem e trazerem uma inovação na arte de amarrar o leitor.
Escrever bem, no meu conceito, nunca foi no sentido da capacidade de alinhavar grandes epopéias, mas de contá-las com leveza e eficácia de envolvimento.
De não apenas terem um texto leve, cristalino e fluído, mas também a inteligência de alinhavar recursos e ganchos para manter o interesse até a última linha.
Neste sentido, um Garcia Marquez ou um Rubem Fonseca têm muito mais valor do que um Thomas Mann ou um Dostoiesvki.
“Li seu livro numa sentada” ou “seu texto parece que voa da página” são os elogios sublimes que sempre procurei para mim e que encontrei nesses sete.
E de frases e parágrafos curtos, preferencial, mas não obrigatoriamente.
A nova ordem da internet são frases curtas, uma por parágrafo, para a leitura em diagonal nos smartphones.
Mas depende do objetivo, da plataforma e do meio. Teses e ensaios em livros digitais podem requerer argumentos mais amarradas em mais de uma frase, num parágrafo.
Já evitei livros de parágrafos longos, embora esse não seja um problema, se o escritor for muito competente.
Entre minhas maiores referências, Garcia Marquez não é um exemplo de parágrafos curtos.
Mas é o melhor de leveza mesmo em parágrafos longos, graças, em grande parte, à experiência de jornalista que lhe deu objetividade e economia a serviço de seu projeto poético.
Foi um grande exercício, que recomendo.
Quais os livros que você teve na cabeceira que o desafiaram a voltar sempre a trechos lidos?
Recomendo que você procure se lembrar de quais foram e os consulte para entender por que lhe arrebataram.
Listo aqui os sete que citei no Facebook, na ordem cronológica em que foram me marcando e me fazendo crescer com eles.
Em comum, repito, têm em comum o que me trouxeram de novo na arte de escrever, contar história e envolver o leitor.
Não precisam ser necessariamente os maiores, mas os melhores para mim e meus propósitos.
1. Cem Anos de Solidão
A obra prima de Gabriel Garcia Marquez, primeira de outras, começou a frequentar minha cabeceira no final dos anos 70, por volta dos 20 anos.
Eu começava a escrever em jornal, a fazer uma faculdade de Letras e a trilhar uma vocação de escritor.
A saga da estirpe solitária que começa e se encerra nela mesma me impactou em cinco coisas principais:
- O gancho sem medo de anunciar logo no início o destino do protagonista, com condição de amarrar o leitor desde a primeira linha:
— Muitos anos depois, diante do pelotão de fuzilamento, o coronel Aureliano Buendía iria se lembrar do dia em que foi com o pai conhecer o rio… - A prosa poética, quase musical, de frases encadeadas num fluxo sem interrupções que deslizam pela página:
— Macondo era então um povoado de casas de barro e taquara às margens de um rio de aguas diáfanas que se precipitavam por pedras redondas e enormes como ovos pré-históricos. - Apesar dos parágrafos longos, a narrativa enxuta e econômica de recursos para fazer o leitor visualizar a cena e os personagens:
— Um gigante corpulento de mãos de pardal. - A narrativa precisa de detalhes, a serviço da narrativa visual, que fazem a cena emanar até, quase, o cheiro, como ele ensinou em suas aulas de roteiro em Cuba.
É quase possível ver as flores amarelas brotando sob o sol entre as ranhuras de um velho galeão galeão carcomido pelo tempo numa praia abondada.
Na mais bem narradas cenas, é difícil não se levar pela carga dramática e visual do fuzilamento de uma multidão em desespero, correndo em redemoinho para fugir do “matraquear lento e contínuo da metralhadora”, como se “descascada como uma laranja”. - A ideia de fatalismo, recorrente em todos os seus livros, de que nada há por fazer diante do destino.
O que explica a narrativa fria de um narrador quase ausente, sem qualquer julgamento dos atos humanos, apesar da visão poética com que contempla o mundo e a solidão de seus personagens.
Essa narrativa quase racional, sem julgamento, contribui muito para dar o status de veracidade à história e ao se chamou de realismo mágico.
Não porque duvidar de que tudo ali é possível, mesmo nos trechos em que se conversa com mortos, chove por anos e borboletas acompanham uma virgem até sua levitação para o céu.
2. O Encontro Marcado
A literatura de Fernando Sabino veio em seguida, alimentada pela solidão do quarto de pensão que ocupei nos meus primeiros dias em Belo Horizonte.
Foi como um compêndio das possibilidades da literatura para entender e dar sentido à existência humana. E transcendê-la como uma forma de reza racional.
Tinha quase como mantra o verso de Drummond: “Nesta cidade de dois milhões de habitantes, estou sozinho no quarto, estou sozinho na América”.
Vinha de certa forma ilustrar com riqueza de confluências esse existencialismo mórbido, já que tratava de quatro jovens embevecidos pela angústia da vida literária.
Sabino nunca foi reconhecido como grande escritor, por ter se dedicado preferencialmente à crônica, gênero tido injustamente como menor porque datado,
Guimarães Rosa, o autor da catedral que foi Grande Sertão: Veredas, as chamava de biscoitos, embora finos. E aconselhava Sabino a fazer pirâmides, romances, e não biscoitos.
Mas nenhum outro me ensinou tanto que era possível falar de transcendência com tanta leveza.
O Encontro Marcado flui como música para mim. Onde se escorre por um fluxo de lirismo e humor até sentir no estômago as estocadas da dor da existência.
3. A Grande Arte
Rubem Fonseca foi uma espécie de soco no estômago da consciência nacional, quando explodiu no final dos anos 70 com sua coletânea de contos Feliz Ano Novo, proibida e por consequência promovida pela ditadura.
Era uma carga de violência, ódio, cinismo e desesperança evisceradas numa narrativa sem piedade. Tão absurdamente crível que era impossível pensar que houvesse outra forma de narrar aquilo.
No conto que dá título ao livro, o assaltante narrador conta a festa de reveillon da zona sul que invadiu com seus comparsas para se divertir e matar alguns granfinos.
Na outra ponta da pirâmide, em Passeios Noturnos, um executivo extravasa seu tédio atropelando mulheres pela noite. Do mesmo jeito, em parágrafos curtos e letais, num cinismo doente sem consciência.
Tinha alta carga de ódio de classe, que o obscurantismo de hoje, na sua leitura apressada, jogaria no lixo.
O Cobrador, publicado logo em seguida, é do sujeito que sai matando para cobrar a dívida que entende lhe ser devida pela sociedade:
“Estão me devendo comida, buceta, cobertor, sapato, casa, automóvel, relógio, dentes.”
Mas os mais avisados veriam ali alta literatura, de anti-heróis possíveis na sociedade degradada em que se transformara o Brasil depois da urbanização selvagem dos anos 60 e 70.
O ápice, logo em seguida, foi o magistral A Grande Arte, em que advogado cínico Mandrake, apreciador de charutos e mulheres, expõe o DNA fonsequiano na investigação de um esfaqueador que deixa prostituas grafadas na testa com a letra P.
Passeios Noturnos inspirou um dos capítulos de que mais gosto de meu primeiro romance, O Camaleão no Abismo, publicado aos 29 anos.
Suas frases muitas curtas não me interessavam. Aprendi nele a contundência da escrita cortante como a faca de seu narrador em A Grande Arte, rasgando como bisturi narrativo a carne da realidade.
4. Agosto
Agosto é o de narrativa mais tradicional na obra provocadora de Rubem Fonseca.
Mas é o mais criativo dos livros que li – e viriam a me inspirar – na forma de cruzar ficção e realidade.
A maestria em misturar um crime comum com o atentado que desencadeou a série de escândalos que deu no suicídio de Getúlio Vargas foi a inspiração desavergonhada de meu romance O Presidente Vai Morrer, de 2010.
Eu o li aos 40 e poucos anos. Meu livro foi escrito e publicado entre os 51 e 53.
Nele, romanceio o drama de Tancredo Neves, internado e morto sem tomar posse depois de ter costurado um processo de transição delicado da ditadura para a democracia.
O foca desesperado pelo furo da sua vida investiga o desaparecimento de uma fotógrafa em meio ao comício das Diretas e descobre a doença que vai matá-lo antes de cumprir sua missão.
Àquela altura, porém, dadas as circunstâncias, não interessava a nenhum editor sério publicá-lo.
Sem Agosto, talvez, não teria havido esse meu livro. Ou não pelo menos da forma em que foi elaborado.
5. A Fogueira das Vaidades
Depois que me formei em jornalismo, já trabalhando na profissão, em meados dos 80, os livros que passaram a fazer minha cabeça eram de ou sobre jornalistas, reais e fictícios.
Minha tesão, como vim a aprender em Agosto, de Rubem Fonseca, e exercer no meu romance depois, passou a ser o jornalismo literário.
Quando se coloca a tração da narrativa jornalística a serviço das transcendência do texto romanesco ou, por outra, a tração romanesca da literatura para dar transcendência à objetividade jornalística.
Grandes livros de jornalistas escritores ou de escritores jornalistas deram outra dimensão a grandes personagens reais ou criaram grandes personagens fictícios com base na realidade dos jornais.
Gay Talese, no primeiro caso. Garcia Marquez no segundo.
A Sangue Frio, de Truman Capote, que trata com pena de ficção a chacina de uma família de fazendeiros no Arkansas, é o pilar desse novo jornalismo.
Mas o que marcou foi A Fogueira das Vaidades, de quase 30 anos depois, 1987, de Tom Wolfe, outro craque do new jornalism. Li também por volta dos 40 e poucos.
Conta a história de um jovem operador de bolsa de Manhattan que atropela um negro do Bronx com sua Ferrari e sua amante loira linda
Para o sistema judicial, político e jornalístico acostumado a lidar com pretos e latinos, essa carne branca é uma banquete em que todos vão se fartar para turbinar seus interesses e suas carreiras numa Nova York apodrecida.
Foi a primeira vez que senti, na boca do estômago, o soco da perda das ilusões com a fantasia de imparcialidade jornalística. E o quanto a literatura poderia fazer por ele.
6. O que se Passa na Cabeça dos Cachorros
Não é ficção, mas é como se fosse. Malcolm Gladwell faz da investigação de temas banais, mal percebidos no cotidiano, uma aventura do conhecimento.
Ao mesmo tempo, a fórmula mais sagaz que vi para decifrar os mecanismos ocultos na comunicação eficiente ou nas falhas de interpretação dela decorrentes.
Tem um ensaio magistral para explicar o que tem no gosto de um ketchup para diferenciá-lo no gosto do consumidor.
Outro sobre as mudanças comportamentais nos EUA, nos últimos 50 anos, a partir do uso de tintura de cabelo.
E, entre tantos outros, o que dá título ao livro, em que decifra o fraseado corporal do maior adestrador de cães para amansar o mais violento dos animais.
Começou a frequentar minha cabeceira já por volta dos 50 anos, quando meu foco se voltava para entender as potencialidades e limites da arte de comunicar.
O mais recente, do mais jovem e brilhante dos pensadores modernos, Yuval Harari, é dos mais inovadores que já conheci na forma de falar de história e ciência com envolvimento de ficcionista.
Tem uma visão de descoberta da história – aqui, a aventura humana, enxugada dos macacos à inteligência artificial – tão criativa e surpreendente que nos faz ver tudo o que já sabíamos como se fosse a primeira vez.
Além de historiador e cientista, é um provocador de texto sofisticado que diz coisas como:
- O capitalismo é a maior das religiões,
- O imperialismo é o sistema político mais lucrativo.
- A espécie humana é a única que acredita em coisas que existem na natureza, como Estado, dinheiro e direitos humanos.
Se passar a tê-lo na cabeceira é indicativo de alguma coisa, talvez seja a necessidade outonal de consolidar tudo o que eu sei de forma totalmente nova.
Um colosso.
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