Nos 17 dias que ficou no hospital para religar o estômago, o presidente Jair Bolsonaro apareceu na desconfortável posição de quem abraça o lado ruim do governo, enquanto o outro trabalha.
Enquanto a parte boa, encarnada nos ministros da Economia e da Justiça, Paulo Guedes e Sérgio Moro, compareceu com propostas para mudar o país, ele marcou presença no noticiário como quem vive de apagar ou piorar os incêndios provocados por suas duas famílias disfuncionais.
A dos políticos do Palácio e a propriamente dita se engalfinharam numa briga de cozinha, numa confluência de episódios ruins, das eleições no Congresso e na descoberta de laranjais cultivados pelas duas na gestão de dinheiro público.
Quando não isso, foi visto na condição ainda mais ingrata de reduzir o alcance das propostas de suas duas maçãs sadias.
Afrouxou algumas medidas de Guedes, como a idade mínima para aposentadoria. Endureceu as mais impopulares de Moro, como a que fortalece a defesa dos policiais envolvidos em combates com morte.
Me lembrou Noronha, o contínuo da Câmara dos Deputados da peça Os Sete Gatinhos que faz vista grossa para as filhas que se prostituem para garantir boa escola e um casamento direito para Silene, a menor de 16 anos, única “pura” da família.
Nessa alegoria em cima de uma das peças mais inquietantes de Nelson Rodrigues, Silene seria os dois ministros do lado bom que buscam um casamento decente com o país enquanto as irmãs, os irmãos no caso, chafurdam na lama.
Ao presidente Noronha Bolsonaro caberia domar e fingir que não vê a cambada de gatos famintos nas vizinhanças de seu governo. Entre eles, os ministros enrolados em laranjais de candidaturas fantasmas ou financiamento de campanha e os aliados fora do governo de que dependem de apoio.
Onyx da Casa Civil, Marcelo Álvaro Antônio do Turismo e agora Gustavo Bebiano da Secretaria da Presidência estão no topo da cadeia alimentar, acima dos filhos problemáticos Carlos e Flávio, ao lado ao lado dos presidentes da Câmara e do Senado, Rodrigo Maia e Davi Alcolumbre.
São Sete Gatinhos, não no sentido dos grandes felinos que perpetraram falcatruas de monta com dinheiro público, com os do passado recente. Mas no sentido de malfeitores miúdos que usaram de vícios consagrados da máquina pública para vantagem pessoal, como, para ficar num exemplo mais ostensivo, a nomeação de funcionários em troca de parte do salário.
É uma realidade que o contínuo/síndico do Planalto precisa manter, sob a aparência de coesão e tranquilidade, para garantir a base necessária que vai viabilizar a aprovação do que as Silenes puras do governo propõem.
Puras aqui, diga-se, no sentido de que cavalgam propostas de interesse público, cujo único propósito é reestruturar e capacitar um Estado anacrônico e venal. Que estão a distância considerável dos que aguardam propostas do governo para negociar apoio a preço alto.
Como é o agente/líder político que tem voto, encarregado de adequar as pretensões técnicas de Guedes e Moro à realidade, é natural que desidrate propostas duras demais que antevê dificuldades de aprovar.
Como tem que tocar o governo com os políticos das duas famílias que o cercam, é natural que gaste a maior parte do tempo administrando o choque de cabeças para ver se apara arestas e forme uma força divergente que vá para frente.
É de todo uma tarefa ingrata, desconfortável e tanto para um presidente que parece ter que manter as aparências, para salvar o que resta de imagem de pureza num governo — ou nunca família — que acaba de se formar.
Como Noronha. E sabe-se lá se vai valer a pena.
No final, Silene mata uma gata grávida, para desconsolo do pai, e se mostra nem tão pura, nem tão sem maldade, nem tão a salvo das tentações do mundo.
Descontando seus pecadilhos — Guedes tem algumas pendengas a esclarecer com fundos de pensão, Moro recebia auxílio moradia tendo casa, comida e roupa lavada —, os dois defendem propostas importantes e radicais, mas que não podem ser a salvação da lavoura.
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