Em 2002, com 14 anos de Hollywood, o roteirista Marc Cherry contabilizava apenas algumas contribuições para o seriado The Golden Girls (As Super Gatas) já em sua fase final (1990/92) e a criação em parceria de um meio fracasso de uma única temporada, The Five Mrs Buchanans (1995-96). Ambos, sobre quatro mulheres às voltas com suas carreiras e seus relacionamentos.
Ele assistia com a mãe ao noticiário sobre um mulher que, no limite do peso da maternidade, havia afogado os cinco filhos.
Comentou retoricamente sobre a que ponto de insanidade poderia chegar uma pessoa e ouviu dela, após um longo silêncio e um trago no cigarro:
– Eu estive lá. (I’ve been there.)
Surpreso, começou a ouvir dela histórias sobre seu desespero para criar os filhos na ausência do marido e dos pais. E delas estruturou o roteiro de Desperate Housewives (Donas de Casa Desesperadas), sobre quatro vizinhas de um subúrbio de classe média alta divididas entre família e trabalho, num tipo de desespero silencioso de quem precisa conciliar suas ambições pessoais e suas necessidades emocionais com as obrigações domésticas, na relação carregada de incertezas com seus maridos, namorados e filhos.
Bree (Marcia Cross), a mãe obcecada por limpeza e aparências que torna um inferno a vida do marido e dos filhos; Lynette (Felicity Huffman), que teve que abandonar uma bem sucedida carreira de executiva para cuidar de uma enfiada de crianças; Susan (Teri Hatcher), uma divorciada imatura em busca de novas relações; Gabrielle (Eva Longoria), uma ex-modelo egocêntrica que deixou as passarelas por um casamento de conveniência.
Exibida em oito temporadas de grande repercussão no mundo todo, entre 2004 e 2011 (até 2012 no Brasil), pegou de jeito o coração das mulheres identificadas com esse jeito pantanoso de estar no mundo. Mas nunca sensibilizou muito os homens, pelo que constato nas minhas tentativas vãs de aplicar-lhes alguns dos 184 episódios que acabo de assistir com aquela sensação de quando se sai de um grande livro. Um pouco maior e melhor do que quando se entrou nele.
Para estes e outras tantas mulheres desavisadas, a maratona daquelas donas de casa meio malucas pela sobrevivência nunca passou de um amontoado de mexericos de novela das 7. Um bando de insanas elevando à máxima potência seus probleminhas cotidianos.
Nada mais simplificador.
Donas de Casa Desesperadas reporta o grito contido, reprimido e desesperado de grandes personagens em busca de um sentido para suas vidas. Parece não passar de banalidade os pequenos problemas que se apresentam a cada episódio, daquelas senhoras embaralhadas em seus problemas miúdos na cozinha, na sala, no quarto, no supermercado, na escola do filho. Mas são, antes, camadas superpostas que vão adensando personagens de carne e osso, capazes das maiores crueldades e da mais elevada generosidade, quando a prole está em risco ou se amplia o incômodo de sua inadequação no mundo.
Como na melhor literatura, ninguém é tão mau que se negue a uma grande generosidade e nem tão bom que não seja capaz de matar. No que traduz melhor que qualquer argumento seu projeto dramático, a série se passa num subúrbio chique e asséptico, de ruas limpas e quintais bem gramados, mas que esconde, em cada temporada, um caso tenebroso de assassinato. Uma morte trágica logo no início dá o tiro de largada para que as quatro comecem a repensar suas vidas.
Como no melhor Nelson Rodrigues, há um grande jogo de aparências tentando sufocar alguma podridão interior, algum mistério absurdo, alguma vontade incontida de afogar cinco filhos.
Num dos making-of que acompanha a caixa da primeira temporada, alguém diz acertadamente que é uma mistura de Mulheres À Beira de Um Ataque de Nervos, Sex and City e A Sete Palmos ( Six Feet Under ). No final dos anos 90 e início dos 2000, o filme que projetou o genial Pedro Almodóvar parecia mesmo reverberar na história das quatro solteiras se debatendo para sobreviver entre trabalho e amor na Nova Iorque do final dos anos 90 e início dos 2.000. Assim como a história da família dona de uma funerária e seus contratempos começava uma carreira de sucesso ao trazer para dentro das casas uma certa familiaridade com a morte (reflexos do 11 de setembro de 2001?).
Que eu saiba, Marc Cherry nunca admitiu a comparação. Além da mãe capaz de, no limite, qualquer crueldade, atribuía parte de sua inspiração às restrições que tinha ao seriado de maior audiência de todos os tempos da TV americana: I Love Lucy . A história de uma família dos anos 50 cheia de boas intenções, de uma felicidade edulcorada, nada tinha com o que ele percebia dentro de casa.
Mas essa sua epopeia de subúrbio parece mesmo traduzir esse coquetel de influências, no que o drama dessas mulheres divididas tem de busca por um sentido de existência e o que essa busca tem de irônico, mórbido, fatalidade e loucura. Ou que uma paródia de alto nível literário tem de trama envolvente, personagens arrebatadoras e diálogos cortantes.
– Você tirou os cadarços de todos os meus tênis – reclama Bree, o simulacro de sua mãe, depois da saga pessoal que ao longo das temporadas vai levá-la do perfeccionismo ao álcool e dele ao flerte com a prostituição e até a ideia de suicídio.
– Sim – responde a outra. – E também escondi as giletes, os comprimidos, as facas e a cortina do banheiro.
– Você acha que eu iria suicidar com a cortina do banheiro?
– Não. Tirei porque era horrorosa.
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