Sofia Zawistovski vive em Nova York em 1947, com um companheiro beberrão e passional, que a levou para casa depois de um desmaio na biblioteca pública.
Frágil e pálida, ela tem marcas de cortes nos pulsos e a gravação de um número de prisioneiro no braço, que ele não tem dificuldade de identificar.
Foi salva de um dos campos de concentração nazista da sua Polônia invadida, onde deixou pai, mãe, marido e dois filhos pequenos, depois de submetida à escolha mais cruel a que um ser humano pode ser exposto.
A escolha de Sofia, tão desesperadora e incontornável, vem dando nome ao dilema cotidiano que vivem os médicos no mundo todo, todos os dias, a cada vez que precisam escolher quem vai herdar o próximo aparelho para continuar respirando.
Imagino que a dor, já muita nos casos não tão raros do cotidiano dos hospitais brasileiros, deve estar fazendo em frangalhos os nervos do pessoal de saúde na pandemia que tornou regra a exceção.
É possível que estejam passando, guardadas as proporções, pelo que transformou essa mulher num caco humano. Um farrapo que se relaciona com o companheiro, o vizinho e o mundo numa culpa abissal, como se tivesse que explicá-la a cada passo.
É possível que não percebéssemos a dimensão dessa dor não fosse o desempenho colossal de Meryl Streep nesse filme de 1982, que parece expiar, no desconsolo, todas as dores do mundo.
Oscar de melhor atriz pelo papel, ela pontua cada emoção com a serenidade de quem incorporou a culpa irremediável que vai marcar o resto de sua existência. Não precisava ter feito outro filme para mostrar quem é. O crítico Roger Ebert escreveu que
— Dificilmente se encontra uma emoção que Streep não toca no filme, e ainda assim nunca estamos conscientes de seu esforço. Este é um dos mais surpreendentes e, mesmo assim, uma das mais naturais performances que eu consigo me lembrar.”
Ela e o filme são grandiosos em mostrar a devastação de uma escolha política sobre o indivíduo. A nos ensinar que, independente de quantos milhões tenham morrido, basta uma, uma pessoa, uma vida, para que ela, decisão, não tenha valido a pena.
Eu vivo em mim todas as dores do mundo, alguém já escreveu. “À parte isso, tenho em mim todos os sonhos do mundo”, dizia Fernando Pessoa para dizer de outra forma que na veia de cada um corre o sentimento de toda a humanidade.
Dito de outra forma, se mexeu com meu irmão, mexeu comigo.
Infelizmente, não é o que ocorre quando se fala de interesse político e o quão longe ele é capaz de ir para transformar o vizinho num inimigo a abater.
Relato da grande miséria humana sobre uma pessoa, esse filme adaptado do livro de William Styron, incomoda também pelo que um povo foi capaz de produzir ao ser levado ao limite da intolerância.
Alan J. Pakula, produtor, roteirista e diretor, tinha certa paixão pelos traumas provocados pelo poder político quando ele se encaminha para esse patamar de gangsterismo.
É dele o icônico Todos os Homens do Presidente, de 1976, em que os jornalistas do Washington Post correm atrás para desmascarar o presidente Nixon por iguais motivos: o abate do inimigo com métodos de gângster.
A certa altura, no flashback que remonta aos maus tratos que passou na casa de um oficial das SS, a filha adolescente ariana flagra Sofia tentando roubar um rádio para a resistência, nos seguintes termos:
— Você é ladra e suja. Minha mãe disse que os polacos são mais sujos e fedorentos do que os ciganos.
A que ponto da submissão cega a ideologias e decisões de governantes messiânicos, a ponto de crucificar o próximo sem culpa, pode ter chegado o ser humano.
Nossos médicos estão em seu holocausto particular a que chegaram sem culpa, tendo que fazer escolhas que vai machucar-lhes a alma pelo resto de suas vidas, pagando o preço de decisões políticas equivocadas.
Seja pelo fato de os governantes não terem investido o necessário em saúde, seja por minimizarem os riscos da pandemia, seja pelas duas coisas e a terceira: ver cada crítico da situação caótica como um inimigo a abater.
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