Resenha do livro Engenheiros do Caos, de Giuliano Da Paoli, sobre a ciência por trás da manipulação do marketing político que mistura populismo e discurso de ódio ao uso de algoritmos

Se você ainda não sabe, a cada vez que Jair Bolsonaro põe fogo no circo para fazer girar uma máquina de provocações nas redes sociais, ele não age só por autoritarismo ou loucura, como se diz.
Opera com base num método que está por trás da mais radical revolução que já vivemos de manipulação do jogo político, que resultou em outra, a conservadora, que deu na vitória do Brexit no Reino Unido, de Donald Trump nos Estados Unidos e de várias outras candidaturas de direita pelo mundo.
Nela, não importa mais defender valores universais e grandes consensos da sociedade, que os candidatos buscavam incorporar. Mas mobilizar desejos ou ódios passageiros, mais ódios que desejos, independente de serem defensáveis segundo os padrões civilizatórios até então vigentes.
Utilizam um método aprendido de Trump, que os americanos chamam de firehosing, de mangueira de incêndio, no sentido de que disparam provocações em ritmo intenso, contínuo e em larga escala, como abordo nesse artigo para o Estado de Minas, sobre o desfile de tanques de Bolsonaro e dois vídeos do governador de Minas, Romeu Zema, seu aprendiz.
Leia: Bolsonaro e Zema manejam tanques e louças na mangueira das redes
Mistura uma alta dose de populismo para estimular os instintos mais básicos dos extremos da população com o uso competente das plataformas de mídias sociais para fazer a mensagem ser recebida e compartilhada em profusão por públicos micro-segmentados.
Tome-se a campanha cerrada contra imigrantes na Europa e nos Estados Unidos, que turbinou a campanha de Victor Urban na Turquia e de Donald Trump nos Estados Unidos.
Em comum, elas transformaram problemas localizados em culpa de todos os males do país e bandeira unificadora da maioria, à custa de generalização, preconceito, teorias conspiratórias ou puro ataque de ódio.
A poder de uma avassaladora e muito estruturada campanha de rede social, totalmente fora dos meios tradicionais de comunicação, manipuladas para chegar a pessoas específicas e moldadas para atingir seus incômodos específicos.
Pela primeira vez em milênios, uma comunidade no sul da Itália (Tirol do Sul) que se dividia em dois nacionalismos atávicos, numa eterna pendenga de posse do território por italianos ou austríacos, se uniu no combate a casamentos gays e motoristas de táxi italianos.
Sua gênese, suas possibilidades e seus perigos está melhor documentada num pequeno, enxuto e bem estruturado grande livro, Os Engenheiros do Caos, do italiano Giuliano Da Paoli.
Ele assistiu na sua Itália ao crescimento de um partido artificial, todo estruturado sobre um site radical do comediante Beppe Grillo, uma espécie de Danilo Gentili. Arrebanhou a maioria das cadeiras do parlamento em 2013 e, na onda Trump, elegeu em 2018 o Bolsonaro deles, também chamado capitão, Matteo Salvini.
Como Trump, Urban, Bolsonaro e outros, eles se inspiraram no método inaugurado na campanha do Brexit, pela saída do Reino Unido da União Europeia, em que uma máquina de ódio foi azeitada pela primeira vez pela manipulação científica de dados, a partir da base de milhões de seguidores do Facebook.
A tal ponto que, conforme escreveu o coordenador da campanha, Dominic Cummings, segundo Da Paoli:
— Se Victoria Woodcock, a responsável pelo software usado na campanha, tivesse sido atropelada por um ônibus, o Reino Unido teria continuado na União Europeia.
Modelagem psicológica de dados
— Dados é o novo petróleo — dizia Alexander Nix em outro livro fundamental para dissecar o método, Manipulados, sobre o escândalo da Cambridge Analytica, que já resenhei aqui.
Diretora da empresa, a autora Brittany Kaiser viveu por dentro a construção da modelagem psicológica que micro-segmentava públicos para mensagens específicas de acordo com seus desejos inconscientes, utilizando dados e tecnologias do Facebook, e sua exportação para campanhas republicanas nos Estados Unidos, que chegou a Trump.
Leia: A Cambridge Analytica e o poder dos dados na revolução conservadora
Essa modelagem psicológica do método, criada dentro de uma incubadora da universidade de Cambridge e acoplada a uma micro-segmentação diabólica, era tão impregnada de tecnologia e sofisticado uso de dados das redes sociais, que revolucionou como nunca o modo de fazer comunicação e marketing para fins políticos.
A ponto de o mesmo Cummings aconselhar:
— Se você é jovem, inteligente e se interessa por política, pense bem antes de estudar ciências políticas na universidade. Você deveria se interessar, em vez disso, em estudar matemática ou física. Num segundo momento você poderá entrar na política e terá conhecimentos mais úteis, com aplicações infinitas. (…) Pode-se sempre ler livros de história mais tarde, mas não é possível aprender matemática na hora que se quer.
É essa engenharia com base em conflito e exploração do caos a partir da exploração do ódio, que Giuliano Da Paoli desvenda. Apela até a física quântica, em outra grande sacada de seu livro.
Em um capítulo recheado de teoria e especulação sobre a evolução da física e sua aplicação em simulações de causa e efeito, ele demonstra como que a massa de opiniões no Facebook, como moléculas em confronto, obedecem a um movimento só aparentemente caótico.
Que, a grosso modo, pode ser compreendido e manipulado por uma infinidade de testes, não para entender os resultados, mas para provocá-los. A mudança de uma causa, de uma mensagem, seu conteúdo, seu título, sua forma e seu formato, podem operar uma mudança de visão e comportamento na massa inteira.
A campanha de Donald Trump testou 6,7 milhões de anúncios, com ajuda de funcionários disponibilizados pelo Facebook em seus escritórios. Contra 65 mil da adversária Hillary Clinton, que não quis o serviço.
Esse volume de testes para mudar as moléculas das redes sociais procura construir uma realidade paralela, a partir da soma dos instintivos provocados. Num sistema retro-alimentador, ela testa até descobrir os desejos mais fundos, os alimenta e os extrai como uma nova ordem.
A tecnologia de testes infinitos para extrair e provocar novas realidades, no choque das moléculas sociais nessa nova era da política quântica, não requer genialidade. Mas capacidade de pagar quantos anúncios forem necessários e variados para chegar à pessoa certa, extrair e provocar seus desejos secretos.
Genialidade foi ter descoberto as suas potencialidades, como foi o caso de Steve Bannon, o maior dos engenheiros do caos, o gênio por trás de toda a revolução desde o Brexit.
Teoria dos jogos eletrônicos
Empresário meio fracassado em incursões em Hollywood e investimentos em Bolsa de Valores, ele iria descobrir em Hong Kong a força das comunidades de jogos eletrônicos e, como ninguém mais, sua aplicação em política.
Como escreve Da Paoli:
“Encontram-se, on-line, milhões de jovens mergulhados numa realidade paralela à qual são ferozmente afeiçoados. Em nome da defesa dessa esfera, estão prontos para mobilizar um poder de fogo enorme, capaz de derrubar empresas e fazer grandes colossos mundiais se curvarem. Claro, é um mundo anárquico, composto de comunidades difíceis de controlar e impregnado de uma cultura frequentemente misógina e hiperviolenta, ao menos na dimensão cibernética. No entanto, é para lá que se transferiu uma parte significativa da energia que faz com que os jovens sejam, historicamente, a plataforma dos tumultos e das revoluções.”
De volta aos EUA em 2005, se associa ao dono do principal site de ultra direita, Breitbart News, criado por um ex-progressista, Andrew Breitbart, enojado com a ditadura do pensamento politicamente correto das elites dominantes na imprensa, nas universidades e na indústria cultural.
Jornalista e escritor filho de burgueses judaicos, liberal no sentido de esquerda que temos aqui, teve sua epifania em 1991, quando assistiu ao massacre orquestrado pelo conglomerado midiático, em parceira com os políticos liberais, do juiz negro Clarence Thomas, indicado à Suprema Corte por George Bush.
Conservador anti-aborto, fora acusado de assédio sexual por uma ex-colaboradora, Anita Hill, num processo capenga que não conseguiu provar e nem obter testemunhas que corroborassem as denúncias de atitudes impróprias.
— Eu acompanhava o inquérito parlamentar a partir de minha posição de bom liberal que desejava a queda de Clarence Thomas, porque os apresentadores vedetes de jornais televisivos diziam que Clarence Thomas era o homem mau e Anita Hill a vítima gentil. A Organização Nacional para as Mulheres pintava também Clarence Thomas como o malvado e Anita Hill como a boa moça, e eu me posicionava do mesmo lado. Eu não entendia como a NAACP (Associação Nacional para a Promoção das Pessoas de Cor) podia continuar assim, de braços cruzados, enquanto os brancos privilegiados, como Ted Kennedy – Ted Kennedy, aquele Ted Kennedy! –, cuspia condenações sobre o comportamento de um homem em relação a uma mulher.
Clarence acabou aprovado numa votação apertada por 52 a 48, e Breitbart viu naquilo, como escreve Da Empoli, que “o establishment americano estava impregnado de uma cultura elitista e hipócrita que dita os termos do discurso público e persegue sem piedade todos aqueles que não se conformam com seus dogmas politicamente corretos.”
(Olavo de Carvalho teve à época o mesmo insight, que expôs em seus três primeiros e principais livros: A Nova Era e a Revolução Cultural, O Jardim das Aflições e O Imbecil Coletivo.)
Com Breitbart, Bannon massacrou Barack Obama desde a primeira hora de sua eleição, em 2008, explorando sua origem africana, quando o establishment comemorava a eleição de um negro como a concretização enfim do sonho americano da igualdade.
Atraiu o apoio de milionários como Trump e Robert Mercer e assumiu o site em 2012, com a morte de Breitbart. Passou então a ampliar a abordagem de tecnologia, na nunca esquecida obsessão de aplicar a teoria das comunidades dos jogos eletrônicos à política.
Que o levou a Alexander Nix, o da modelagem psicológica casada com algoritmo, que vinha ganhando eleições em várias partes da Europa e da África e tinha tido importante participação na do Brexit.
Com ele e Mercer, criaram a Cambridge Analytica, que encapsulou o método, ganhou campanhas estaduais republicanas e chegou à de Donald Trump, o bufão perfeito para casar conteúdo e algoritmo, cujo sucesso o levou a exportar o modelo.
Chegou a correr mundo oferecendo sua bruxaria e trabalhando para implantar uma Internacional Nacionalista. Ganhou a principal cadeira de assessoria de comunicação da Casa Branca, de onde foi demitido um ano depois por fazer sombra ao chefe que elegeu.
Entrou em desgraça a partir daí, arrastado para os tribunais no escândalo mundial de uso dos dados do Facebook e por outro, doméstico e vergonhoso, de desvio de contribuições arrecadadas para a construção do tal muro na fronteira do México, principal cavalo de batalha da campanha xenófoba trumpista.
Os Engenheiros do Caos não chega aí. O processo judicial que explica muito do método que mudou o mundo é melhor descrito por Brittany Kaiser, também acusada e colaboradora premiada da justiça americana, que viria a transformar sua experiência na série da Netflix que roteirizou: Privacidade Hackeada.
Manipulados é sem dúvida um segundo livro a ser lido para entender detalhes do método. E A Máquina do Ódio, da repórter da Folha de S. Paulo, Patrícia Campos Mello, é o terceiro que recomendo, para entender sua aplicabilidade no contexto brasileiro, que levou à vitória de Jair Bolsonaro.
Vale ler também minha resenha sobre ele: Como se criou a máquina de ódio que elegeu Bolsonaro e rachou o país.
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