Zélia Duncan postou um vídeo emocionado que evoca a revolução provocada no início dos 80 pelo seriado Malu Mulher. Atribui a Regina Duarte, protagonista, a responsabilidade pela revolução que impactou sua geração, sua carreira, sua visão de mundo.
Regina vivia uma descasada que teve a coragem de romper um casamento sufocante e ir à luta no mercado de trabalho e de relações. A mulher começava a sair de casa, a questionar a união tradicional do marido provedor e a enfrentar preconceitos e resistências daí decorrentes.
“Começar de novo e contar comigo / vai valer à pena ter sobrevivido”, dizia a contagiante letra da melodia de Ivan Lins e Victor Martins, que Duncan cantarola no vídeo como se fosse seu hino e o de uma geração.
Soa bonito e até emocionante como tudo o que os bons artistas fazem com o coração, mas também um tanto ingênuo e simplificador.
Regina Duarte se projetou na psiquê nacional como a namoradinha da novela “Minha Doce Namorada”, no meio da década de 60 e antes da contracultura que daria às caras nos movimentos rebeldes que tiveram 68 como o ano inaugural.
Bombou como a Malu liberada do seriado extraordinário de Daniel Filho, que também dirigiu um especial marcante só de cantoras (Mulher 80) na linha da emancipação feminina. Mas também explodiu como uma amante safada e exploradora de dois homens, na viúva Porcina de Roque Santeiro (1985), já na maturidade.
A crer nesse vídeo em que a emoção turva o entendimento, Regina Duarte também estaria fazendo uma revolução ao fazer a namoradinha do Brasil? E outra, ao fazer a amante vagaba do país que se desiludia depois da morte inesperada de Tancredo Neves, o primeiro presidente civil eleito após a ditadura?
É confundir ficção com realidade, personagem com autor. Soa como aqueles fãs de novela ignorantes do passado, que agrediam na rua os atores/atrizes dos papéis de malvados.
Regina Duarte falava textos dos outros, Zélia Duncan, de Janet Clair e Dias Gomes, sobretudo, e sobre várias outras mulheres, como as muitas mães caretas ou batalhadoras que interpretou antes e depois.
Não dá para saber em qual deles ela acreditava. É tentador desenhar pra você que atores e atrizes mimetizam seus personagens a ponto de desaparecer debaixo deles, sobretudo os tradicionais como Regina, Lima Duarte e Fernanda Montenegro.
(Há atores brechtinianos que não deixam o personagem dominá-lo, como foram José Wilker e Paulo César Pereio, mas que passam a sensação, para mim desagradável, de estarem sempre fazendo o mesmo e eles mesmos.)
Talvez seja mais correto dizer que cada um escolhe a Regina que quer para defender sua revolução. Zélia escolheu a Malu Mulher. Outras poderiam escolher a esperta Porcina que dobra dois homens ou uma das mães de seu portfólio.
Revolução em 20 anos
O mais interessante das revoluções culturais é que em geral não sabemos que a estamos fazendo. Só são reconhecidas como revolução com a decantação e a sabedoria do tempo, como você, Zélia, deve estar percebendo hoje.
Nós não sabíamos que estávamos sendo profundamente impactados pelo cinema de Hollywood quando assistíamos inocentes a seus faroestes de heróis solitários e suas comédias de jovens ingênuas, nos 50.
Como não sabíamos que estávamos desenvolvendo um outro tipo de caráter flexível e um tanto quanto licencioso com as novelas da Globo, a partir dos 70.
Assim como os jovens de 68 não sabiam que produziriam uma nova ordem familiar e os seguidores de Chico Buarque de Holanda dos anos 70 construiriam o edifício da relativização social, de glorificação do “meu guri” que roubava porque era vítima da sociedade.
Há uma tese em mais de uma boca de que as revoluções culturais produzem seus efeitos um mínimo de 20 anos depois.
Faz sentido para mim com a Hollywood dos 50, que me pegou pensando como seus heróis nos 70. Com a revolução de 68, que reduziu a taxa de nascimento nos 80. Com a geração de Chico Buarque dos 70 de que vi consequencia no proselitismo politicamente correto dos 90.
Para não dizer que só falei de flores, no estado mínimo de Margareth Tratcher e Ronald Regan, produto dos 80 que iria se consolidar depois dos 2.000. De onde começa a fazer água e abrir espaço para questionamento da ausência absoluta do Estado na economia.
(No Brasil, onde tudo chega com também uns 20 anos de atraso, a ideia do estado mínimo começa a aflorar agora, lutando contra a adversidade dos esgotamento da fórmula no resto do mundo.)
Malu Mulher pode se situar no meio da revolução cultural em andamento do 68, Zélia Duncan. No início dos 80, em que o número de filhos por casal começava a cair drasticamente. No final da década, a menina de minissaia das passeatas já estava de jeans e terninho no mercado de trabalho, ralando para se dividir entre as tarefas de casa e da fábrica. Vinte anos depois, já não era mais assunto.
Que tenha ajudado a impulsionar o movimento de emancipação domesticamente, no sentido de nacionalmente, sim. Como as novelas da Globo, com seus quase 90% de audiência naquela década, fez as revoluções de costume que quis, sem saber que estava querendo.
(Merece estudo a contribuição que deu para o racismo e para reduzi-lo, ao colocar e tirar atores negros de papéis subalternos.)
Os grandes atores de revoluções, como a menina de minissaia dos 60, a Tratcher dos 70 ou os economistas dos 80 não sabiam que estavam mudando nada. Muito menos Regina Duarte, cuja principal influência detectada de sua passagem pelas novelas foi o uso do turbante da viúva Porcina, que se disseminou pelo fim dos 80.
As mais potentes revoluções costumam ser silenciosas. Mal percebemos o tal marxismo cultural que, de fato, contaminou imprensa, editoras e universidades, cujos reflexos estão nas relativizações morais da geração Chico Buarque.
Num de seus grandes artigos para a Folha de S. Paulo, o insuspeito Demetrio Magnoli, um homem de esquerda que conhece a fundo o meio universitário, mostra uma de suas origens e sua força a partir da compra de livros didáticos pelo governo federal, centralizada a partir dos anos 70.
Até então, diz ele, o mercado dos livros didáticos, escolhidos pelos professores, tinha “uma saudável diversidade de obras, de qualidade bastante desigual, que refletiam as diferentes abordagens teóricas e pedagógicas em voga nas universidades”.
A partir da compra centralizada, porém, formaram-se as comissões de “especialistas” nas universidades federais para selecionar obras sob seus critérios “de qualidade”. Colonizadas por professores-ativistas, desandaram, não por acaso 20 anos depois, num “marxismo outonal, diluído em caldos de anti-imperialismo, terceiro-mundismo e multiculturalismo”.
Os governos do PT utilizaram esse poder para conduzir uma revolução em marcha lenta, revestida por uma fina película de saber acadêmico.
Em O Estado que nos Educa, FSP, 11/1/2020
As análises “técnicas” contaminaram-se de (pre)conceitos políticos. Aos poucos, num processo que jamais se completou, eliminaram-se inúmeras obras “desviantes”.
A revolução escolar atingiu livros de exatas e biológicas —mas, claro, teve impacto maior nos de humanas. Na era pós-Muro de Berlim, um marxismo outonal, diluído em caldos de anti-imperialismo, terceiro-mundismo e multiculturalismo, passou a impregnar a maior parte dos livros de história e geografia.
Siga o dinheiro: as editoras jamais reclamaram —antes, pelo contrário, assumiram o papel de correias de pressão sobre autores recalcitrantes.
As obras “de qualidade” deviam trafegar pelos circuitos do antiamericanismo ritual, da denúncia da “história ocidental”, da idealização romântica da África pré-colonial. A política identitária desceu como uma sombra sobre os textos escolares.
A escravidão moderna passou a ser explicada pela chave do racismo, não pela lógica do sistema mercantil colonial. A campanha abolicionista foi expulsa do palco iluminado da história brasileira. Zumbi dos Palmares transformou-se no ícone absoluto da luta antiescravista.
Confundimos o dever estatal de financiar a educação pública com o poder abusivo reivindicado pelo governo de invadir as salas de aula e moldar o discurso dos professores.
Como em toda revolução que não se sabe sê-lo, os seguidores de Chico Buarque e os professores desses conselhos nunca souberam que estavam mudando a história. Naquele momento, estavam, inocentemente, lutando contra a opressão do Estado. Sem saber que, talvez, estivessem produzindo outra.
O que Jair Bolsonaro e sua turma tentam agora, ao defender que os livros didáticos “serão feitos por nós”, na ideia equivocada de que, como lembra Magnoli, o Estado tem o direito de educar o povo.
Inocentes ideológicos
É também tentador e igualmente estúpido apregoar que “estamos fazendo uma revolução”, como gostam de fazer os governantes de primeira viagem. Como faz agora a ala dos inocentes ideológicos do governo Bolsonaro, os pobres diabos que reproduzem o discurso do chefe sem medo de cair no ridículo.
Eles também acham que estão fazendo a revolução que vai dar resultados daqui a 20 anos, como já pontificou a respeito o guru da turma, Olavo de Carvalho.
Porque elas podem simplesmente não acontecerem, não o serem no futuro. Nossa história é cheia de cadáveres de políticos que se predestinaram a ficar 20 anos no poder e quebraram a cara na primeira esquina do tempo. Tucanos e petistas são os exemplos mais recentes.
Não tiveram/têm a grandeza de ver ou a humildade de saber que não se as fazem. São produto de um tempo e de mudanças em curso que determinados personagens as encarnam. Por uma conjunção de fatores, surfam nelas. E passam à história.
Jair Bolsonaro encarna hoje um desejo de mudança que vinha de longe, assim como Lula a seu tempo, FHC e Collor antes dele, Tancredo mais atrás e os militares bem antes, todos casos em que a sociedade ansiava algo bem diferente do que via.
Está no terreno das mudanças em curso, não de revoluções.
Regina Duarte, que não fez revolução alguma mas pode ter encarnado o espírito do tempo em determinados momentos, não deve fazer, tomara, nenhuma revolução na Secretaria Especial de Cultura.
Será tanto melhor quanto menos pretender se arvorar a mudar o curso da história. Como pretendeu seu antecessor, Roberto Alvim, que pregava como nova uma ideia dos anos 30 da revolução comunista que o homem da propaganda de Hitler encampou: o realismo engajado na arte, que nunca deu nada que preste.
Se fizer o arroz com feijão de abrir o órgão público de fomento da cultura para estimular a produção, sem censura e sem feudos, aí sim poderá começar uma revolução que, em 20 anos, tire o mofo de suas prateleiras e de suas ideias.
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