O que Jair Bolsonaro tem de Zé Bigorna?
Desde essa sexta-feira trágica em que rifou Sérgio Moro e seu principal patrimônio eleitoral, venho pensando numa inspiração literária para falar do capitão messiânico e da cadeia de erros que o isolou ainda mais no palácio.
Talvez nada ou muito pouco, mas me divirto achando uma desculpa para falar de política sem deixar de falar de literatura.
Porque já me prometi que não trataria mais de política senão com objetivos literários.
Apenas na medida em que, para além das urgências eleitorais, ela sirva para entender as ambições e as debilidades humanas.
Quem me conhece mais a fundo, sabe que sempre tentei. Meus melhores artigos sobre Lula, Dilma e Eduardo Cunha, por exemplo, eram tentativas de entender o ser humano por trás da carapaça das circunstâncias. Em vão.
Nesse país dividido, em que todos os adversários viraram inimigos a destruir, toda pretensão de interpretação é confundida com militância canalha.
Posso ter derrapado para a militância, ainda que disfarçada, mas nunca foi consciente.
Então…
Zé Bigorna era um ferreiro iletrado, maestro amador da banda de música, que acabou suspeito da morte do coronel Quirino Papa Terra e de sua mulher, Marlene, por supostamente ter descoberto a traição dos dois.
Embora não fosse o autor, acabou aclamado pela cidade e candidato a prefeito por ter enfrentado o poderoso coronel explorador daqueles tempos do coronelato, anos 30.
Problema é que o matador de verdade, Chicão, sente inveja da fama e acaba morto pelo próprio Bigorna, agora já transformado pelas tentações do poder.
Esse caso especial sofisticado de 1977, do também sofisticado dramaturgo Lauro César Muniz, virou a novela O Salvador da Pátria, de 1989, e filme de Anselmo Duarte, de 1977, com o sempre deslumbrante Dias Gomes no mesmo papel.
Nela, o autor teve mais espaço para ampliar a degradação da identidade do homem puro que se transformou pelas circunstâncias e teve que se degradar mais para se manter nelas.
Zé Bigorna me faz pensar em Bolsonaro também com um pobre diabo que em determinado momento incorporou a principal demanda da sociedade contra o coronel que a trapaceava.
Me arrisco a dizer que não convenceria tanta gente se não sugerisse algo de puro e autêntico, em que o desespero da população por melhores dias conferiu legitimidade.
Mas também, como o Zé Bigorna que acabou engravatado e comendo a Maitê Proença nos últimos capítulos da novela, ele também vai se adaptando às circunstâncias para sobreviver e se manter.
As últimas notícias dão conta de que indicará amigos para o Ministério da Justiça, para proteger os filhos, e negociará cargos e verbas com a banda fisiológica Congresso, para salvar a própria pele.
Se sempre foi assim e as novas circunstâncias apenas expõem o fundo do seu caráter, que a sociedade desconhecia, só confirma o quanto tem de Zé de Bigorna. Que, como nós todos, também desconhecia suas motivações adormecidas.
Ou não teve tempo de perceber, no espaço curto dos 100 minutos do caso especial e do filme. Na novela, não sei se chegou a uma autocrítica, que seria excelente efeito dramático.
Se Bolsonaro tem algo de Zé Bigorna, gosto de pensar que tenho algo de Lauro César Muniz.
Esse grande escritor e dramaturgo não conseguiu mais sucesso depois que começou a tentar voos mais sofisticados de especulação política e estética no tradicional universo das novelas.
Escreveu a bem sucedida Carinhoso, inspirado no filme Sabrina de Billy Wilder, e a grandiosa O Casarão, um caso de amor centenário em meio à decadência do café no interior de São Paulo, tratado em três tempos históricos.
Mas só viu fiascos a partir daí: Os Gigantes, sobre o poder das multinacionais, e Espelho Mágico, uma meta-novela em que atores faziam uma novela dentro de outra além de tratar dos conflitos de um dramaturgo em meio à repressão política.
Sua miséria de noveleiro é mais ou menos a minha no meu quintal de escritor, que já percebeu que política, se é ruim para se falar como analista profissional no nosso país conflagrado, é péssima como matéria dramatúrgica e de literatura.
Se insisto, é porque está além das minhas forças.
Nela, onde também caí por circunstâncias e fiz carreira de jornalista e assessor de imprensa parlamentar, é minha sina, minha grandeza e minha miséria.
De onde tento escapar. Quase sempre em vão, ouvindo martelar no lado direito do cérebro a frase de Trotsky que me serve de epígrafe, em tradução livre:
“Eu posso não estar interessado na guerra, mas a guerra está interessada em mim.”
Márcia de Paula Wiesen diz
Maravilhosa comparação. Realmente o poder é sedutor, principalmente, para aos fracos de caráter.