“Quem vai noticiar o fim do mundo?”, pergunta o articulista e editor do caderno Pensar do Estado de Minas, João Paulo, no melhor texto que já li sobre o dilema dos jornais diante do avanço da internet e da crise existencial dos jornalistas diante da iminência do fim de sua missão:
– Somos perseguidos pela inevitabilidade do fim dos jornais. Apenas os prazos mudam, se alargam um pouco, mas deixam sempre um rastro de crise no ar. (…) Hoje não precisamos de jornal para conhecer o mundo, nem de jornalistas para reportá-lo. (…) Hoje se faz jornal sem papel e sem máquinas.
Sumariza os problemas que estão inviabilizando o jornalismo como negócio (o modelo brasileiro se lastreia na liberdade econômica como condição de liberdade editorial) e como necessidade básica do cidadão:
– O jornalismo, com sua função social de garantir a liberdade de opinião na sociedade, vem sendo açodado por todos os lados. Há o ataque das novas mídias, a fuga de leitores em direção a plataformas mais divertidas, o decréscimo da lucratividade das empresas, o avanço de investidores sem tradição no negócio e a perda dos objetivos éticos em nome do interesse financeiro.
Estende-se sobre os estragos do domínio da cultura de informação rápida e inútil sobre a reflexão que faz a diferença na missão de informar:
–Pode parecer um paradoxo, mas é exatamente o excesso de informação o maior inimigo do bom jornalismo. Nem todo fato é informação, nem toda notícia pulicada é jornalismo. A confusão gera não apenas um cenário confuso como eticamente cambeta. A tendência do deslocamento da informação trabalhada com inteligência jornalística para o mero lado apresentado pela multiplicidade de suportes tecnológicos não traduz um nova democracia informativa, mas uma balbúrdia.
Demonstra que essa opção tira do cidadão sua principal referência de reordenar o mundo, construir seus juízos e exercer sua cidadania:
– Se o leitor entende que cabe ao jornalismo ordenar os fatos, encontra em seu periódico alimento para se posicionar no mundo. Caso contrário, se é tomado pela anarquia dos achismos, se torna um cínico que apenas confirma os prejulgamentos. Nada há nada menos iluminista que um blog inspirado por paixões. (…) Enquanto a sociedade se afoga em informação inútil e irresponsável, a sociedade perde uma de suas mais importantes salvaguardas da liberdade.
E conclui que resta ao jornalismo investir no que é o coração seu negócio: a ética. Que só pode ser resgatada com investimento na credibilidade e na qualidade da informação para “suplantar a tendência anti-intelectualista que joga contra os próprios jornais”. Resume:
– Nada mais burro que incentivar o leitor a não ler em nome do entretenimento.
É possível que não houvesse alguém mais talhado para essa autocrítica do que João Paulo. É daquele tipo de jornalista da velha cepa, quase jurássico para esses tempos vulgares, de estupenda formação teórica, que se obrigava a ter um bom domínio de todos os campos do saber e a costurá-los com eficácia de forma a contribuir para a construção de uma ética.
Se o jornalista comum foi sempre um especialista em generalidades, pode-se dizer que esse tipo se pautou por ser um especialista em profundidades. Um Cláudio Abramo, um Ivan Lessa, um Paulo Francis – não por acaso já mortos – que não faziam concessões à superficialidade.
Seu caderno, que circula aos sábados, é uma trincheira meio exótica e resistente desse tipo de jornalismo do pensamento (como o Ilustríssima da Folha de S. Paulo), meio sem lugar no mundo dominado pela leitura dos cliques obsessivos e pela comunicação de 140 toques.
Em geral, é ele mesmo que puxa o tom do caderno desde a capa, escrevendo a matéria principal, onde se vislumbra sua catedral de conhecimento, transitando com desenvoltura da filosofia à psicanálise, da literatura à história, da economia ao entretenimento. E complementa com seu artigo pessoal, na segunda página, outra espécie de trincheira da trincheira da antiguidade clássica, onde exercita sua luta algo incansável sobre a mediocridade desses tempos. Em artigos quase sempre definitivos, raros na imprensa nacional pela sua abrangência e pelo estupendo volume de informação, sem prejuízo da clareza.
(Não por acaso, nesta semana em que exorcizou o dilema da vulgarização em prejuízo da ética, a matéria de capa, de novo assinada por ele, tratava de uma nova tradução de O Capital, de Karl Marx. Outro tipo de catedral que aspira a encapsular todo o conhecimento e requer do leitor de suas quase 900 páginas uma “formação em filosofia, história, economia e política, entre outras disciplinas”, como diz João Paulo, como se escrevesse sobre ele mesmo.)
Sua visão do negócio parece traduzir ou encontrar algum eco na redação do maior jornal do Estado, que vem fazendo um esforço danado de investir em reportagens de fôlego, sobretudo aos domingos, produzindo pesquisas, desencavando documentos históricos, bancando viagens longas e onerosas para seus repórteres.
Tenho dúvidas de que vai dar certo. Ou se vai chegar onde deseja João Paulo e seu séquito de sonhadores resistentes dentro do caderno. O jornal investe em textos densos e informação complexa para uma geração infiel, entregue a cliques e imagens fulgazes. E, ao optar por um aprofundamento meio fora de moda, pode acabar como um nicho para iluminados, como os bebedores de vinhos raros, que se sentem mais sábios que os outros.
Ou como os dinossauros no bom sentido como João Paulo. Ou como eu ou os malucos raros capazes de escrever um texto longo e pretensioso sobre o fim do mundo (num blog metido a iluminista), mesmo sabendo que, pelo tamanho, vai ser lido por poucos.
(Os links o artigo e a matéria principal sobre O Capital requerem senha de assinante do jornal.)
Deixe um comentário