Biografia e entrevista no Roda Viva reforçam o gênio que criou o Padrão Globo de Qualidade e, sem querer, seu engessamnento.
Quando José Bonifácio de Oliveira Sobrinho, o Boni, lançou a biografia O Livro do Boni, em 2011, eu o comparei sob alguns protestos no Facebook a Steve Jobs, o gênio que revolucionou pelo menos umas oito indústrias, do design à da tela de touch.
Mantive a tese de que o nosso Jobs nacional era um gênio de inteligência tentacular que explica todas as revoluções que fez dentro da Globo e criou a televisão brasileira tal a conhecemos.
Revelou uma intuição extraordinária para saber o que dava certo e fazer dar certo nas áreas de jornalismo, esportes, música, entretenimento de auditório, humor, teledramaturgia, infantil e serviços.
Teve sua mão em tudo o que, com a melhor qualidade, a TV aberta deveria ter. E implantou um padrão que fez poeira em todos os concorrentes num curto espaço de tempo, igualou nossos padrões ao americano e ainda não foi igualado dentro do país.
Como leio sobre televisão desde sempre, já colhi inúmeros depoimentos de suas obsessões de gênio, absolutamente certo do que seria e do que resultado que viria.
Daniel Filho, com quem fez a dupla mais criativa que reinventou as novelas, nos anos 70, conta que, num final de ano dos finais da década, ele lhe pediu nada menos um conjunto de cinco seriados inéditos para o horário depois da novela das 8h, um por dia da semana.
Numa roda de bebedeiras, como decidiam muitas coisas, exigiu que os programas estreassem dali a quatro meses, abril, mês das estreias da rede.
Dessa conversa, como tantas que geraram grandes produtos dos dois, surgiu no tempo previsto cinco programas que marcaram a TV para sempre, alguns icônicos: Carga Pesada, O Bem Amado, Plantão de Polícia, Malu Mulher e Caso Especial.
Cada um abordando universos diferentes da realidade brasileira, o interior atrasado, a vida rural, a marginalidade nas grandes cidades, a emancipação feminina e, no Caso Especial, adaptações de peças teatrais de tudo o que fosse possível.
Era o típico dono de restaurante que se preocupava em saber como foi feito o sanduíche e punha a mão na massa.
Em O Livro do Boni, conta a epopeia que empreendeu para convencer a família de Regina Duarte, em viagens ao interior de São Paulo, a deixá-la se mudar para o Rio e fazer o papel da moça recatada de Véu de Noiva. Na sua obsessão de gênio, só ela, que não por acaso viria a se transformar na “namoradinha do Brasil”, poderia fazer o papel.
Eu tenho o caso pessoal de um amigo que presenciou seu chilique criativo no episódio em que se definiu a abertura do Fantástico, o programa de variedades que virou sinônimo das noites de domingo.
Nenhum dos muitos criadores envolvidos na empreitada, compositores, músicos, cenógrafos e coreógrafos entendiam suas intenções ou se faziam entender. Até que, meio em fúria, sentou e datilografou o rascunho do que viria a ser a toada que rima com noites de domingo. “É Fantástico, da Idade da Pedra ao Homem de Plástico…O show da vida.”
— É isso o que eu quero.
Rede de jornalismo
Publicitário da Lintas, nos anos 50, era o último cara que chamariam para dirigir uma televisão, como contou no excelente Roda Vida da semana passada, a que compareceu online para falar dos 70 anos da TV brasileira, que lhe deve a parte bem sucedida de sua história. Respondia a uma pergunta sobre quem o substituiria.
— Pode ser alguém que não seja do meio.
Muito antes, ele nunca teve dúvidas de que a TV deveria se organizar em rede. Chegou a propor a ideia aos Diários Associados, à Record e à Excelsior, que não aderiram ou não pagaram as despesas iniciais. Já tinha falado o mesmo com o amigo Walter Clark, que viria ser o poderoso executivo da emissora criada em 1965, com financiamento do grupo americano Time Life.
Clark o levou a Roberto Marinho. Como conta em O Livro do Boni, quando apresentou os custos de uma rede para um jornal nacional, ao contrário dos outros botocudos donos de TV, Roberto Marinho respondeu que ele precisaria de — e teria — mais dinheiro.
O Jornal Nacional, que ia ao encontro dos planos de integração continental dos governos militares, estreou em 1969, às 8h em ponto, espremido entre duas novelas. Como âncora de um modelo de programação que sustentou toda a alavanca poderosa de audiência da rede que chegou até mais de 90% de audiência nos capítulos finais de suas novelas.
Eu conto isso tudo, misturando biografia e Roda Vida, ao qual ele foi com sucesso pela segunda vez (pesquisem no Youtube), por contraponto à miséria de improviso que era o negócio de televisão até o surgimento da Globo.
— Aquilo tudo era muito bagunçado — dizia mais ou menos Roberto Marinho, dono do jornal O Globo, cujas aventuras comerciais para implementar seu império nunca deixou de lado sua obsessão pelo rigor e pelo perfeccionismo.
O contraponto era os Diários Associados, o império de mais de 100 veículos influentes — jornais, rádios, revistas, agência de notícias — que o maluco Assis Chateaubriand tinha implantado na primeira metade do século na base de achaques contra governos e empresas, como está no grande Chatô – O Rei do Brasil, de Fernando Moraes.
Leia meu artigo Criador da TV brasileira era um visionário maluco
Enquanto a Globo começava sua carreira de investimento sério para cima, juntando as obsessões de Marinho e Boni, os Diários iniciavam sua rápida descida irreversível ladeira abaixo.
Chateaubriand havia distribuído o conglomerado de ilhas incomunicáveis entre 22 condôminos que não poderiam herdá-las. Que resultou numa autofagia rápida e altamente destrutiva.
Walter Clark viria a ser marginalizado e depois enxotado por Marinho, pouco depois do meio da década dos 70, mais ou menos à época de Joe Walhach, o executivo americano dentro da Globo, impaciente com os lucros que não vinham.
— When will we make a profit?
No Roda Viva dessa semana, Boni tributou para a história que, embora não se fale dele, foi tão importante quanto Clark e ele para a história da Globo. Atuava como bombeiro e algodão entre cristais nos conflitos iniciais para implantação do modelo de qualidade que mudou a televisão e a cara do Brasil espelhado nela e exportado por ela.
Jornalismo engessado
Que acabou resultando também num engessamento, como se depreendeu muito bem da melhor pergunta da noite no Roda Vida, a do veterano Tonico Ferreira.
Ele rememorou o clima de medo dos profissionais da redação em meio a um Jornal Nacional no ar. Um clima paralisante de medo do erro, uma herança atribuída exclusivamente a Boni, que pode ter descambado para também o medo de ousar.
Causa e reflexo de um modelo que não mudou desde que ele saiu da Globo, há quase 30 anos, e deixou sequelas sérias no jornalismo, por exemplo.
Em meio a uma boa discussão provocada pelo grande jornalista, escritor e teórico de TV Roberto Muylaert, Boni admitiu que a matéria que vai ao ar às 8h da manhã não pode ser a mesma que vai à meia-noite.
Como ocorre hoje e não é por falta de dinheiro e talento.
Boni lembrou que fazer jornalismo hoje, em que o repórter sozinho opera o carro, a câmera, o som e a iluminação, “é muito mais barato”. E Muylaert citou o caso lamentável de uma apresentadora talentosa como Renata Lo Prete ficar por conta de ler notícias no jornal da meia noite.
— O Manhattan Connection é o único programa bom jornalístico da Globo, que passa na Globonews, a 1h da madrugada — emendou Boni.
Ele mantou no peito a acusação de que possa ter contribuído para o medo engessador. Nunca admitiu e continua admitindo que não pode haver erro operacional. Mas que nunca foi contra a ousadia, muito pelo contrário, mas que a soma dos erros não pode ser maior do que a de acertos.
O futuro da televisão aberta, que dificilmente será superada pelo streaming, segundo esse profeta que sabe tudo, é a instantaneidade, de que o jornalismo, o esporte e os reality shows são a principal referência. Sem desconsiderar que ainda há espaço para outros produtos que nasceram com ela.
Ele acha, por exemplo, que foi um equívoco acabar com os programas infantis. Vê futuro cada vez mais promissor para as novelas como espaço insuperável de identificação dos brasileiros com seus personagens e seus ídolos, por meses a fio. Defende mais espaço para humor e seus talentos, como Regina Casé ou Marcelo Adnet, por exemplo.
Mas desde que, a seu jeito, sejam bem cuidados. Chico Anysio e Jô Soares foram o que foram porque, como disse, tiveram apoio, no sentido de que, como entendi, se montaram grandes estruturas em torno deles.
Noutra de suas melhores intervenções, em resposta a Zeca Camargo, bem no espírito com que construiu o seu padrão, recusou a ideia de que se deva abaixar o nível dos programas para atingir classes mais baixas. Mais ou menos assim:
— A pessoa da classe D quer consumir programas da classe C, a da classe C, os programas da B e, os da B, os programas da A.
Fazer bem feito, enfim, tudo. Com ousadia e, se possível, a intuição que só ele parece ter tido para criar o modelo vencedor.
Ana Maria Machado, novelista que dividiu a bancada de entrevistadores formada de notáveis, que teve ainda e Joyce Pascowitch e apresentação impecável de Vera Magalhães, fez um testemunho apaixonado da genialidade do homem que via o primeiro capítulo de uma novela e prescrevia tudo o que iria funcionar ou não nos capítulos seguintes.
E mandava mudar. É o sujeito que não merece o engessamento que resultou de sua herança.
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