Certo produtor de Hollywood, com o pragmatismo dos produtores de Hollywood no auge dos filmes da Metro-Goldwyn-Mayer, costumava dizer que conhecia um bom filme pela sua bunda. Se ela não doesse durante a projeção, tratava-se de um bom filme. No caso de quem vê uma ópera pela primeira vez, e no cinema, a sensação é sempre a desse produtor vendo um filme ruim.
Les Misérables, o terceiro mais longevo musical da Broadway, depois de Cats e O Fantasma da Ópera, não tem cenários extraordinários. Um amontoado de móveis velhos serve de taberna, cortiço e barricada, sobre um chão giratório que permite diversos ângulos e uma impressionante mobilidade dos atores.
É o suficiente para simular com impressionante agilidade o complicado épico de Victor Hugo sobre um sujeito que sai da prisão após 19 anos, pelo roubo de um pão, e é perseguido pelo resto da vida por um inspetor implacável, entre paixões amorosas e políticas, em meio aos movimentos revolucionários da Paris do início do século XIX.
Mas é o bastante para o que interessa ao bom teatro: um mínimo de recursos para dar ao espectador uma ideia geral do pano de fundo e abrir espaço para o desempenho, a música maravilhosa e a voz dos atores, principalmente voz, no caso das óperas.
Daí que é quase um contrassenso transpor o que se assenta na imaginação e no diálogo para um veículo que se estruturou sobre a negação das duas coisas, como o cinema. Cenários extraordinários com efeitos visuais estrondosos para simularem o real e ação desenfreada sem conversa fiada é o que de mais antagônico se pode imaginar a um gênero em que o sujeito canta uma música inteira para dizer que está arrependido, como o inspetor Javert no ato final. O que no cinema se resolve com uma frase curta ou um olhar.
Os Miseráveis, tradução literal para o cinema do musical da Broadway adaptado do original francês, é, como todas essas traduções, uma traição para os amantes do teatro e, em especial, das óperas. E sobretudo porque os produtores precisam trocar os grandes intérpretes do teatro, que passaram uma vida treinando a garganta, por estrelas do momento, como Anne Hathaway e Russel Crowe, que, até então, só deveriam cantar no banheiro. (Hugh Jackman, o protagonista Jean Valjean, fez musicais na Broadway.)
Surpreende que o filme, segundo se publicou, já esteja entre as primeiras bilheterias do ano em todo mundo, com mais de 300 milhões de dólares faturados, em pé de igualdade com as superproduções bem sucedidas.
É um valor exorbitante, considerando-se a pequena plateia interessada no gênero e que o grande público neófito em ópera só vai ao cinema atrás da tal realidade virtual, de ação, da fala de gente e dos rostos que viu em filmes de ação e pancadaria.
Pode ser que se arrependa e saia com a sensação de ter comprado gato por lebre. O silêncio algo desconfortável que se percebe dentro do cinema, mesmo diante da música arrebatadora, pode ser a do mesmo produtor produtor de Hollywood diante de um filme ruim: a bunda está doendo.
Para quem como eu tem paixão por musicais – especialmente este – e por Anne Hathaway mesmo calada (ela arrebenta aqui), vale qualquer sacrifício.
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