Oscar Welles tinha feito o sucesso que todo roteirista poderia almejar com apenas 23 anos de idade, em 1938. Incendiou o país com o realismo de uma transmissão radiofônica da invasão dos Estados Unidos por alienígenas.
O estilo ultra bem sucedido de narrativa jornalística se intrometendo num programa de variedades, que provocou traumas, protestos e sua demissão da rádio ABC, pode ter inspirado o roteiro de Cidadão Kane, três anos depois.
Um jornalista tenta decifrar o motivo da morte e o perfil de um barão da imprensa megalômano e egocêntrico, a partir de sua última palavra antes de morrer, Rosebud, misturando documentários e entrevistas.
Pouco compreendido no seu lançamento, em 1941, acabou considerado o melhor filme de todos os tempos em algumas listas célebres, como a do Britanic Institute, de 2002, que ouviu os maiores cineastas e críticos de cinema em atividade no mundo.
(Um Corpo que Cai, de Hitchcock, e a saga dos Poderoso Chefão, de Francis Copolla, ficaram em segundo.)
Por conta sobretudo de suas inovações, hoje corriqueiras mas absolutamente estranhas à época: narração fragmentada, plano sequência (aquele em que a sujeito anda e vai encadeando cenas, sem cortes) e a fotografia em profundidade, que antecipa em preto e branco os filmes 3D.
Por incrível que pareça, ganhou o Oscar de 42 apenas pelo roteiro original das nove indicações que recebeu: roteiro, diretor, ator, filme, direção de arte, fotografia (p&b colossal), montagem, mixagem e trilha sonora.
(Perdeu naquele ano pródigo de grandes filmes para Como Era Verde o Meu Vale, de John Houston, uma de suas paixões. Conta-se que assistiu 40 vezes no Tempo das Diligências, do mesmo diretor, durante as filmagens de Kane.)
Que nem era o melhor do filme nem bem obra dele, mas da parceria com Herman J. Mankiewivcz, um dos tantos descendentes judeus que arrebentaram em Hollywood nos anos 40 e 50.
Autor único ou em parceria em cerca de 80 filmes, entre 1926 e 55, tinha uma pegada satírica que perpassa o filme e está nos “cerca de quarenta dos filmes que me lembro melhor dos anos 20 e 30”, como disse uma das lendas da crítica estadunidense, Pauline Kael.
Vista de hoje, a narrativa me parece convencional e um tanto obra de jornalista, profissão por acaso de origem de Mankiewicz, leve e irônica mas sem grandes tensões. Vai ganhar dimensão e transcendência no último frame, em que explica a origem dramática da expressão Rosebud.
Como do protagonista e do próprio Welles. Dele deve ter sido certamente a cartada de gênio precoce, rebelde e indisciplinado, que mal acertou nos 13 filmes que fez ou deixou inacabados, como o de Dom Quixote, uma saga de 13 anos de filmagem, entre 1970 e 82.
Passou os últimos anos tirando dinheiro de seu ofício de ator ou narrador (113 filmes, segundo cataloga a Wikipedia) para acabar a obra, que a Netflix iria complementar e concluir só agora em 2018 (O Outro Lado do Vento), numa empreitada de cineastas adoradores de sua obra.
Ganhou um Oscar honorário em 1970, não certamente pelo conjunto da obra, mas pelo filme que fez a cabeça de uma geração de cineastas. Uma turma que começava a deixá-lo para trás em arrasa-quarteirões: Francis Ford Copolla, Martin Scorcese, Steven Spielberg.
Único reconhecimento mais notável de um gênio fora de lugar, esgotado com a morte aos 70 anos.
PS – Pode ter feito também a cabeça de escritores. Nada me tira da cabeça que Orson Welles e Cidadão Kane podem ter inspirado também nosso maior biógrafo, Fernando Morais, a escrever a caudalosa biografia de Assis Chateubriand, Chatô – O Rei do Brasil. O nosso barão de imprensa tinha o mesmo perfil um tanto quanto de gângster do inspirador de Welles, o magnata William Randolph Hearst .
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