Suponhamos que você esteja chegando de Marte e possa abstrair que Jair Bolsonaro é o presidente eleito. E pretenda analisar o novo governo a partir de sua adesão ou de sua oposição ao Ministério.
Comece pela indicação do ministro Ernesto Araújo para as Relações Exteriores.
Somada à força de Olavo Carvalho e dos evangélicos na escolha dos novos ministros, você poderá dizer que esse se trata de um governo de vocação teocrático fundamentalista, na vanguarda do atraso contra todos os avanços em comportamento. Se for mais conservador, poderá dizer que estava passando da hora de arrochar os costumes numa pátria que ficou bastante licenciosa ou pluralista demais contra os valores da maioria.
Aí tome as várias indicações de militares para o primeiro escalão.
Considerando-se o papel deles na ditadura que escureceu o país por 20 anos, você poderá dizer que este é um governo de tentações ditatoriais, com risco de reagir com a força em caso de divergência política com o Congresso. Mas também será lícito admitir que eles vêm para colocar ordem no puleiro, num país tomado pela corrupção cujo reflexo está nas ruas, onde não se pode mais andar.
Mas tome também a indicação de Sérgio Moro para a pasta da Justiça e Segurança.
Mesmo com alguma má vontade, você terá que dizer que esse é um governo comprometido com o estado de direito e o cumprimento das leis, intransigente com desvios e corrupção. Com muito má vontade, na linha do discurso de parte do lulismo, que se prevê a implantação de uma república jurídico/policial, na fronteira de desrespeitar direitos constitucionais dos réus.
E pegue em seguida a escolha do todo poderoso ministro da Economia, Paulo Guedes.
Moderníssimo guru de uma turma de adeptos da escola liberal de Chicago, sugere que este será o mais inovador governo brasileiro em liberdade econômica. Comprometido com a liberdade individual de criar, produzir e competir, a livre concorrência, o direito de produzir riqueza e um estado cada vez mais enxuto para não oprimir e vampirizar quem produz. Na linha do pensamento de esquerda intervencionista, que não gosta de nada disso, você pode achar que o governo que vai entregar a horta para os cabritos.
Resta pegar a ala das indicações políticas, para o Ministério da Casa Civil (Onyx Lorenzoni), o da Agricultura (Thereza Cristina Dias) e o da Cidadania, atualmente em disputa para saber quem os evangélicos, de novo, vão aceitar.
Com boa ou má vontade, pode-se dizer com alguma ou nenhuma razão que o Ministério do novo governo repete o toma-la-dá com os parlamentares, com alguma concessão ética. Mesmo que o troca-troca seja o mínimo possível, inédito por enquanto, e qualquer parlamentar que se pegue tem alguma história para contar sobre doação irregular de campanha.
Cada oposição escolhe seu rosto
No resumo da ópera, dependendo de sua posição política, de seu espírito público, de suas antipatias, suas idiossincrasias ou mesmo frustrações emocionais, você dará ao governo um rosto parecido ou diferente do seu. Uma cara com que se identifica ou que rejeita no espelho de suas convicções, conscientes ou não.
Pior, pode isolar apenas um dos cinco rostos acima e afirmar sem medo de estar caindo em contradição que ele, apenas ele, traduz o rosto de corpo inteiro do governo.
Acontece com os melhores analistas.
Em artigo na sua coluna na Folha de S. Paulo, o filósofo à esquerda Vladimir Safatle tomou a forte influência religiosa para carimbar o próximo governo como “República Fundamentalista”. Na medida em que oferece a promessa de uma comunidade de amparo e redenção.
Na mesma linha, o colunista também de esquerda do site GGN, Luís Nassif, ampliou o conceito para “teocrático fundamentalista“, ao misturar a influência religiosa com a tendência de Bolsonaro e de seu vice Mourão de resistir ao contraditório.
— Pela primeira vez na história, o país experimentará o que significa a verdadeira teocracia, a visão moral-religiosa se impondo sobre o pluralismo e as liberdades individuais.
Com mais boa vontade, mas muito reticente, o reconhecido articulista à direita, Reinaldo Azevedo, dividiu o governo em três rostos numa sacada espirituosa. Seria o dos representantes da Polícia (Moro), de Chicago (Guedes) e da Caserna (militares).
O grande articulista da New Yorker, Malcolm Gladwell, teoriza em Blink sobre a arte de pensar sem pensar. Que está relacionada à capacidade humana de tomar decisões em cima de julgamentos instantâneos, com alto grau de acerto. É produto da experiência que faz um médico saber num sinal se o paciente vai ter um infarto ou o vendedor percebe num traço de feição do comprador que a venda vai render.
>>> Ver meu artigo Blink, a arte de decidir sem pensar e seu marketing pessoal
Jornalistas, historiadores e filósofos experientes devem intuir quando uma decisão vai encaminhar a história para determinado ponto, ao reagir intuitivamente a um dado da sua experiência que o autoriza a inferir naquele sentido.
Mas, porém, contudo, todavia, estamos num ambiente tão conflagrado em, não só a racionalidade, mas toda experiência vem sendo questionada por conta de seus curto-circuitos.
Ambiente conflagrado estimula oposição
Mais que nossa experiência, intuição ou capacidade de reagir com sabedoria mesmo instantânea, temos a tentação de destruir o inimigo. Como num FlaxFlu que nos faz isolar informações que favoreçam os nossos argumentos e destruam os do outro. Na expectativa, ignorante ou inconsciente, de que ele não decifrará nossa simplificação.
Está mais para “projeção”, um dos conceitos ainda inatacáveis da psicanálise, segundo o qual projetamos em alguém ou algo a culpa por nossos fracassos. Ou, no caso dos Ministérios, nossa angústia de não sabermos o certo ou estarmos certos demais contra nosso inimigo.
Direto da Wikipedia, segundo o criador da teoria, Sigmund Freud:
“A projeção é um mecanismo de defesa psicológico em que determinada pessoa “projeta” seus próprios pensamentos, motivações, desejos e sentimentos indesejáveis numa ou mais pessoas. Para alguns psicanalistas e psicólogos, trata-se de um processo muito comum que todas as pessoas utilizam em certa medida. Peter Gay define projeção como “a operação de expulsar os sentimentos ou desejos individuais considerados totalmente inaceitáveis, ou muito vergonhosos, obscenos e perigosos, atribuindo-os a outra pessoa.”
Combater a reação, penso eu humildemente, requer a humildade para admitir que o outro pode estar certo e que sua projeção para isolar um fato em busca de conforto intelectual é quase doença de abordagem freudiana. Ou, melhor, esperar ver como as coisas vão ficar para ver como é que ficam.
Nós jornalistas — como os filósofos, os historiadores, os economistas, astrólogos e sobretudo os analistas de jornal — temos uma tendência terrível de querer antecipar o futuro para simular genialidade.
Ideal, no mínimo, no caso, é esperar. Ou tentar, pelo menos, diante dos dados apresentados, uma síntese honesta dos vários rostos.
Eu tentei.
Até onde percebo, pelas informações dadas e pelo que infiro do caráter do capitão da reserva que tem sete mandatos e alguma boa manha política.
Que é um governo em que a soma dos rostos indica a intenção pelo restabelecimento da lei e da ordem, com alto grau de liberdade econômica e afinado com o perfil conservador do liberalismo clássico, com vocação para o enquadramento dos costumes e das divergências políticas. Se vai haver uma coisa ou outra, é esperar.
Não sei se faz bem o quadro. Mas é como tento não ver um rosto só no espelho em reflexo ao meu. Mesmo confundindo, evito pelo menos o risco de ser fundamentalista e senhor da verdade, sem ter condição para isso.
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