Há mais de um ano vínhamos conversando sobre o assunto. Há seis meses, começamos a consultar o site. Em maio, já sabíamos que a seleção se daria somente por ordem cronológica. A partir de junho, todos os dias, consultávamos a página. Em julho, quando saiu o edital e a confirmação da data e hora de início das inscrições, cancelei o voo para estar diante do computador na hora exata da abertura.
Na segunda-feira fatídica, minha mulher me acorda por telefone às 6h55.
– Já ligou o computador?
– Não.
– Liga. E se puseram o formulário no ar antes?
– Não é possível. O edital é claro.
Ligo a máquina antes de tomar café. Vou direto ao site. Uma página estática pede “Aguardem” enquanto um reloginho digital amplia a tensão a cada minuto que falta para a hora esperada. Faltam 1 hora, 3 minutos, 26 segundos, 25, 24, 23…
Ligo também o laptop e o ipad, para o caso de um dos três darem pau. Ok. Se nenhum funcionar, saio correndo para o trabalho, onde, numa rede mais de 360 aparelhos, não é possível que eu não consiga.
Preparo o café, separo todos os documentos, menos a carteira de identidade, cujos dados imagino saber de cor. Releio o edital, navego pelo site, me permito umas escapadas para o noticiário dos outros sites sem deixar de voltar de vez em quando à página do reloginho. Faltam 16 minutos, 45 segundos, 44, 43, 42…
A pulsação está acelerada nos segundos finais da hora fatal: 37, 38, 33… Apalpo os bolsos e acerto os documentos sobre a mesa. 12, 11, 10… Tomara que minha mulher não ligue agora. Tomara que ninguém ligue agora. Nem telefone, nem capainha, nem porteiro, nem empregada…
Zero. E nada acontece. Por óbvio, a página deveria dar uma refresh qualquer, fechar e abrir espaço para outra, com o formulário, com seus espaços a preencher, seus botões e setas a apertar. Mas… nada.
Ai, ai, ai. Vou ter que ligar para lá. Não vão me atender ou, se atenderem, o tempo de orientação me tomará alguns minutos fatais e tudo estará perdido. E se computador der pau? Esse pessoal é sacana e deve ter colocado essas dificuldades para reduzir mesmo a concorrência.
Vou ao edital, revejo os endereços eletrônicos – o do estabelecimento, o do edital, o de inscrições… Resolvo voltar do início. A página inicial. Passo pelos menus que, dias antes, haviam me levado à inscrição de novatos. Respiração acelerada, um frio na barriga. Vai dar, vai dar…
Enfim. Um Box para cadastro – “ah, não, cadastro?”–, mas, ao mesmo tempo, o fatídico botão de inscrição. Clico. Respiro fundo. O formulário enfim surge, com letras grandes e espaços generosos, aberto e receptivo. Feliz, eu diria.
Me ajeito na cadeira, acerto os documentos na mesa como um cacoete já incorporado. Tiro o último ar do peito e me debruço sobre o teclado como um adolescente sobre um joystick. E vou em frente. Nem tão rápido que possa errar os números – “não, isso não” – e nem tão lento que possa perder a vaga.
Tudo vai bem agora, calma, ritmada e controladamente. Até que pedem data de inscrição da Carteira de Identidade. Explodo. “Que merda!” Por que pedem uma bobagem dessas? Na cópia do formulário disponibilizado antes, visto, revisto e preenchido a mão por mim e minha mulher na véspera, isso não estava pedido. Mergulho no trauma persecutório.
– Sacanagem. Querem nos tirar do páreo… Tudo que puderem fazer para reduzir a concorrência, vão fazer.
Levanto às pressas atrás da carteira. A de motorista, que sempre uso, não serve. Devo ser o único que se preocupa com esse rigor. Outros certamente chutarão qualquer numero. Que diferença faz?
Por sorte, eu a encontro na caixa de documentos velhos, junto com a da esposa, sei lá se atualizada. Ela pusera o número em letras grandes no formulário em papel da véspera para evitar contratempos, mas quem, diabos, vai se preocupar com data de emissão de carteira de identidade, a não ser eles, claramente mal intencionados em reduzir a concorrência?
– Não foi à toa que marcaram as inscrições para o período de férias escolares, quando todos viajam.
Me sento às pressas, revirando os dois documentos diante dos olhos, mas já decidido a colocar qualquer data se não as encontrasse.
Digito, completo o restante dos boxes e estou diante, enfim, do meu destino. A tecla CONLUIR agora só está à minha espera. Me ajeito e recolho o ar disponível nos pulmões, a mão erguida para dar solenidade e precisão ao gesto, dividido entre a expectativa do sucesso ou o medo de explodir na minha cara alguma página do tipo ERROR ou PAGE NOT FOUND.
Clico. E, sim, deu certo. Leio o número imenso da inscrição antes de qualquer coisa, condição de estar no número de vagas disponíveis. Sim, 57. Se demorasse mais alguns minutos, seria 93 ou 95. Mais outros e seria 123, 125. Outro? Um minuto a mais, 177, 178 e… Adeus. 181 e estaríamos fora.
– Como essa vida é frágil e nosso destino pode estar refém de tão pouco…
Dou um salto da cadeira, sem tempo para filosofia, e saio pulando como cowboy americano pela sala. Yupiiiii. Na cozinha, já estou dançando can-can. Dos Estados Unidos à França em alguns segundos. Consegui, consegui. 57. Vou guardar esse número para o resto da vida.
Volto ao computador, mais relaxado. Antes de ligar para minha mulher, preciso imprimir a inscrição. Imprimo uma cópia. E uma segunda, por via das dúvidas. “Vai que esse sistema dá pau, perdem nossa inscrição lá e…” Por ainda mais via das dúvidas, dou um print na tela.
– Quero ver eles negarem que eu consegui…
Corro enfim ao telefone e soletro aos gritos.
– A-mor, con-se-gui-mos!
Depois que ela explode de alegria do outro lado e abraça os parentes por perto, tento contar cada detalhe do meu calvário, mas ela tem uma lista de pessoas a serem informadas da conquista.
– Já ligou para a mãe? Liga pra tia. Liga pra sua irmã. Tem que falar com o Oscar, com a Moema, com a Cris, com a Renata. Você tem o telefone do João Marcelo? Será que o tio Álvaro tá sabendo que é hoje?…
Respiro mais calmamente e explico que, antes de qualquer coisa, preciso falar com quem interessa, primeiro. Peço para passar o telefone para ela, a razão de tudo isso.
– Deixa eu falar com ela aí, anda.
Escuto com uma lágrima a voz mais doce desse mundo:
– Ei, pai. Você tá vindo?
– Oi filha, você não acredita. Acabei de falar com sua mãe. Nós conseguimos, filha! Conseguimos te matricular na escola!
Ela nem pede licença para mudar de assunto.
– Ah, pai. Sabe aquele maiô de oncinha que a tia me deu?
– Sei.
– Eu vou com ele na praia hoje. É lindo.
– É mesmo?
– É. Aqui. Ó. Que horas você vem?
– Tou indo à noite, meu amor. Já fiz tudo o que tinha de fazer por aqui.
– Aqui, pai. É… Você vai dormir comigo?
– Claro, filha. Você vai me buscar no aeroporto?
– Vou, né, pai?
– Olha, filha, no ano que vem…
Mas ela corta, sem dó:
– Então tá, pai. Tchau. Beijo.
E deve ter saído correndo com alguma prima. Me deixou com o telefone no ar, sem poder dizer que, nas últimas 24 horas, como sempre, eu estava enfrentando todas as guerras para adiantar o seu futuro ou parte do que pode ser o seu futuro nos próximos 15 anos. Sem sequer me dar tempo de lhe dizer do que somos capazes por amá-la, sem querer nada em troca. Nem atenção.
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