Livro do filósofo Michael J. Sandel mostra como o pagamento para furar a fila em tudo comercializa a vida e torna predatória as relações humanas
Na fila do cinema, sempre olhei com antipatia para a fila da Tim, que garante aos clientes da operadora o privilégio de furar a fila, como os velhos e as mulheres grávidas.
Da mesma forma que me incomodam os portadores de cartão fidelidade da Tam terem precedência na entrada do avião, também antes dos velhos, das grávidas e das mulheres com crianças no colo.
Fiquei pensando se isso não é coisa de empresas pequenas até no nome – Tim e Tam – e de marqueteiros idem que não vêm problema em comercializar regras que estão no plano da educação e do respeito aos semelhantes. Furar fila é feio e desrespeitoso sob qualquer argumento criativo ou mercadológico.
Mas aí pensei nos médicos credenciados de planos de saúde, que sempre acham um buraco na agenda se você estiver disposto a pagar, e acabei percebendo que estamos diante de um fenômeno mais amplo – a comercialização da vida que o livro O Que o Dinheiro Não Compra (What Money Can’t Buy) historia e teoriza, com uma enfiada de pequenos e grandes exemplos.
Hoje já possível, segundo o livro, comprar barrigas de aluguel na Índia, o direito de abater rinocerontes negros na África do Sul, de poluir o ar na Europa (cotas de carbono) e emigrar definitivamente nos Estados Unidos.
Na vida cotidiana americana, há colégios que pagam para crianças lerem um livro, faculdades que aceitam alunos mediante doações, institutos que remuneram mães drogadas para deixarem de ter filhos, médicos de boutique que vendem o número de seu celular a clientes vip.
E até um mórbido mercado de comercialização de seguros de vida de doentes terminais. A empresa compra o plano pela metade do preço apostando na morte do segurado em um ano, por exemplo, e passa a cobrar do cliente o compromisso assumido de morrer no tempo certo.
No plano da área pública, que começa a inspirar nossos administradores por aqui, governos vendem o privilégio de uso de pistas mais rápidas no trânsito, alugam celas especiais em presídios e comercializam espaços nas cantinas de escola ou nos carros de polícia.
Estádios históricos passam a ter nome de empresas, clubes fabricam souvenirs (como a bola da última rebatida da partida de beisebol) e jogadores vendem autógrafos, comercializados a peso de ouro num mercado negro.
Seriam trocas naturais entre pessoas adultas num mundo livre, filhas do triunfalismo de mercado que varreu tudo nas últimas duas décadas, não fosse seu caráter predatório, como diz o autor, o filósofo Michael J. Sandel, que vem se tornando astro internacional em palestras disputadas por cambistas até na Ásia.
Ele não é de nem de longe o tipo de idealista xenófobo que combate as virtudes do mercado como melhor mecanismo de promoção de desenvolvimento e distribuição de riqueza.
Mas está e tem convencido de que, na medida em que se passa a vender camarotes em todos os ramos da experiência humana, está ampliando a diferença entre os que podem e os que não podem pagar e corrompendo o que deveria ser feito por virtude ou interesse genuíno.
Quando médicos vendem privilégios na agenda, faculdades trocam vagas por doações e prefeitos alugam espaços públicos estão claramente criando distinção e alargando o fosso.
Quando os países vendem o direito de imigração, como fazem os EUA para empresários que empregam um número mínimo de funcionários, está se corrompendo o sentido da solidariedade internacional a desvalidos e refugiados.
Quando se paga a crianças para ler ou a adultos para deixarem o fumo, está-se corrompendo o sentido da educação, quando não criando estímulos falsos que podem perder o sentido quando o dinheiro acaba.
Quando o governo da África do Sul cobra para que milionários abatam rinocerontes negros, para subsidiar sua paradoxal política preservacionista, está-se deturpando todo o discurso voluntarista da preservação. Ele diz:
Numa sociedade em tudo está à venda, a vida fica mais difícil para os que dispõem de recursos mais modestos. Não se trata apenas de desigualdade e injustiça, mas da tendência corrosiva dos mercados. Porque os mercados não se limitam a distribuir bens; eles também expressam e promovem certas atitudes em relação aos produtos trocados.
Evidentemente, se colocarmos preço nas coisas, elas passam a ter o valor do preço que dermos, seja a educação dos filhos por dinheiro, a venda de votos ou o primeiro lugar na fila. E certas coisas, ligadas à vida e à convivência em sociedade, não se vende.
O livro de Sandel, publicado depois do sucesso de outro, Justiça, produto de um curso bem sucedido em Harvard, culpa a visão economicista em que todo o comportamento humano pode ser explicado e previsto pelo cálculo racional de seus custos e benefícios.
As pessoas decidem o que fazer sopesando os custos e benefícios das opções à sua frente e escolhendo aquela que acreditam ser capaz de lhes proporcionar maior bem-estar ou que tenha mais utilidade.
Os economistas, que antes se ocupavam de questões macro-estruturais – inflação, dívida, poupança, investimento, taxas de juros e comércio exterior – passaram a se meter em ciência do comportamento e, com isso, legitimar a teoria de que tudo tem seu preço, de detergentes a casamento e filhos, da participação política à proteção ambiental e à proteção aos mais fracos.
— Não chegamos a essa situação por escolha deliberada — diz ele, sobre o que pra mim é inexorável.
Vejo pouca perspectiva de mudança enquanto houver um adulto precisando vender alguma coisa para outro adulto, um sabonete, um rim, um autógrafo ou um pouco mais de paciência dos donos de creche.
É clássico o caso de uma creche americana que passou a cobrar multa pelo atraso dos pais na hora de retirar os filhos da escola (está no livro Freakonomics, de Steven Levitt). Ao invés de reprimir o hábito, a multa teve efeito contrário. Como pagavam, os pais passaram a se achar no direito de atrasar.
Mas também admito, como esse filósofo pop-star, que “está na hora de perguntarmos se queremos viver assim”.
Deixe um comentário