O Mecanismo, a série sobre a Lava Jato de José Padilha, é um fiasco para quem acompanhou as reviravoltas da operação e esperava se reencontrar com a história que vai ficar para os séculos como um dos mais relevantes momentos de tração do Brasil, como foi o da operação Mãos Limpas para a Itália.
No mínimo, para quem esperava um thriller político de alta octanagem sobre uma história real que tem elementos de traição, chantagem, sexo e morte suficientes para dispensar manobras ficcionais.
Seria um trabalho fácil para o roteirista. Era só pegar de forma literal o grande livro de Wladimir Neto em que a série foi inspirada para oferecer o prato suculento de tensão e redenção de que as grandes obras dramáticas vivem.
Mas Padilha, o grande diretor dos Tropas de Elite e de Narcos, preferiu só ilustrar o discurso que vem costurando em artigos nos jornais sobre o tal Mecanismo, a sua epifania filosófica sobre a ação histórica dos empreiteiros que alimenta o sistema político e se retroalimenta como um câncer que se espalha como metástase pelo organismo da vida brasileira.
Só chupa para pontuar esse discurso alguns momentos cruciais da Lava Jato: a prisão do doleiro no posto de gasolina que inspirou o nome da operação, o momento em que toda a investigação correu risco diante de uma decisão do STF, sempre ele, para soltar todo mundo e as manobras em Brasília para evitar a prisão dos 13 empreiteiros que representam mais de 50% o PIB nacional.
A intenção é uma trama policial de matriz americana, com aquele tipo de herói de suspense que tem um drama a carpir e uma montanha a remover para se redimir.
Selton Mello faz o herói isolado, um agente federal indisciplinado que é expulso da corporação e vai continuar tocando a investigação por contra própria, num cenário em que a equipe de policiais, procuradores e o juiz da Lava Jato são coadjuvantes.
É difícil acreditar que um policial brasileiro seja demitido da carreira por indisciplina funcional e, uma vez afastado, tenha idealismo suficiente para continuar investigando e colocando a família em risco sem ganhar nada por isso.
Mas a opção aqui é pelo drama que vai se esmerar em explicar o mecanismo, com inclusive um recurso caro a Padilha que os roteiristas mais modernos abominam: a narração em off recorrente do protagonista, como naquelas charges que precisam de legenda para serem entendidas, um atestado de que a história não está sendo bem contada suficiente para evitá-la.
À opção reducionista, acrescentou um recurso bufo de paródia, quase desmoralizante para seus padrões e de efeito duvidoso, tanto para fins dramáticos quanto legais, de trocar os nomes dos personagens reais. Sérgio Moro virou Paulo Rigo, a delegada Érika Marena se transformou em Verena Cardoni, Lula virou João Higino, Dilma é Janete Ruscov, Odebrecht foi alçada a Miller & Brecht e a revista Veja a Leia, num cenário em que a Petrobrasil é investigada por uma Polícia Federativa. Pra quê?
Como não mudou o nome da operação, Lava Jato, e nem o do país em que ela acontece, o Brasil, ficou como o teste bobo do elefante rosa. Não pense num elefante rosa. Ao pretender ficção pura, poderia ter trocado o nome da operação para Lava Pato e o do país para, sei lá, Banânia, com licença poética do Reinaldo Azevedo e efeitos mais coerentes.
Mecanismo do discurso político
Me incomodou mais, porém, que, no afã de simplificar para talvez soar compreensível a plateias fora do país, agradar gregos e troianos ou evitar o panfleto e as patrulhas ideológicas, acabou por dar algumas torcidas no pescoço da história.
Enfiou todo mundo no mesmo saco, na tese que vai ficando conveniente de que o mecanismo vem de décadas e elegeu todos os presidentes da República, diluindo o papel de protagonista do PT no escândalo.
Para simplificar a narrativa e enfatizar o tom em um único antagonista de peso, é Alberto Youssef (Antônio Ibrahim aqui) quem assume o ônus de todas as denúncias e delações. Desaparecem de cena, entre outros, os tesoureiros do partido e os diretores indicados por ele para a Petrobras/Petrobrasil, que a história real registra como os reais protagonistas.
Num pecado menor mas nada desprezível para entender suas convicções, carrega a mão em Lúcio Lemes (Aécio Neves para os íntimos) com a tese de que o PIB nacional apostou nele nas eleições de 2014, confiante que, eleito, ele acabaria com a Lava Jato. Como se sabe, o PIB apostou nos dois, mas arrastou mais fichas contabilizadas ou não na campanha da candidata do governo. Em outra cena, numa conversa com Thames (Temer), atribui-lhe a responsabilidade pelo impeachment de Janete, a Dilma.
Também dilui o papel da equipe da Lava Jato, para a qual olha com indiscutível restrição.
Não fosse o fato de concentrar todo o trabalho das equipes num policial afastado sob acusação de bipolaridade, há críticas pouco sutis aos métodos:
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- “A gente pede um mandado para ter acesso à gravação, depois finge que ainda não viu”— pede o protagonista.
- Um policial federal recebe propina para fazer entrar facilidades na cela de Ibrahim/Youssef.
- A causa da demissão do protagonista é uma reação descabida no gabinete de Paulo Rigo (vulgo Sérgio Moro) quando o juiz aceita a primeira delação premiada de Ibrahim/Youssef, ainda no caso Banestado, dez anos antes.
Projeto dramático e político
A simplificação para pegar turistas e sedimentar seu projeto dramático nessa plataforma internacional deve cumprir seu objetivo e atrair críticas também simplificadoras ou duras, como a que Dilma Rousseff em carne em osso já postou. Ler aqui.
Como tudo em Padilha, tem alto padrão técnico e uma excitante turma anônima que, às custas da excelente direção de atores, parece gente de carne e osso, sob o comando da semi-anônima Carol Abras e só dois craques (Selton Melo e Enrique Diaz, excelente como Ibrahim).
E será didática sobre o país onde, como o protagonista diz logo no início, o mais perigoso não é o traficante do morro, mas a turma do colarinho do asfalto. E dramaticamente eficiente sobre o indivíduo que nada pode fazer sob o peso do mecanismo.
A debacle moral de Selton Melo ao final, como a de Padilha, diante de uma realidade imutável, é bem eficiente para explicar o seu projeto dramático, embora camufle o seu projeto político.
Simplificador, um tanto desrespeitoso com a história, injusto com a turma da Lava Jato que deu as tripas para transformar o país, quase inútil para se entender sua dimensão no futuro, mas um eficiente soco no estômago de nossas ilusões.
Pecadilho é só camuflar suas intenções políticas, que podem entretanto ficar mais claras na segunda temporada, quando João Higino e Janete Ruscov devem ir para o primeiro plano depois da prisão de Ricardo Brecht.
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