A morte de uma e o seriado da outra me remetem ao fascínio e ao aprendizado com elas de ser simples, íntegro e não se deslumbrar pelo poder, mesmo o desejando
Sempre tive um fascínio ainda inexplicado pelas irmãs Leão, Danuza e Nara, que se ampliou e me desafiou um pouco mais nos eventos recentes de morte da primeira e documentário no streaming sobre a segunda.
Foram duas meninas simples que pareciam não estarem empenhadas para terem o poder excepcional que tiveram na segunda metade do século 20, a não ser elas mesmas, com simplicidade e profunda integridade.
A certa altura da vida, ainda no começo, por algum mecanismo inconsciente ou não, intuíram que seriam maiores do que eram apenas por serem elas mesmas. Visceralmente autênticas.
Danuza estava lá pelos 14 anos, lá pelos finais dos anos 40, e sem roupa digna para ir ao cobiçado carnaval do Copacabana Palace e se enrolou num pedaço de seda verde. Saiu de lá e para o mundo eleita a mais bonita da noite.
Nara estava um pouco a mais dessa faixa no final dos anos 50, de banquinho, violão, cabelo curtinho e uma vozinha de menina oposta em tudo ao vozeirão e ao cabelo de laquê das divas das paradas de sucesso. Mas já eleita sem o saber a musa da geração de gênios que iria fundar a Bossa Nova num apartamento da avenida Atlântica.
Danuza foi para Paris e para o mundo logo em seguida e nos quarenta anos seguintes, flanando como estrela principal de todos os salões do poder e de todas as festas em que pisou. De mulher de três jornalistas influentes (Samuel Wainer, Antônio Maria e Renato Machado) a promoter e centro das maiores casas de diversão da noite do Rio.
Nara foi a primeira intérprete, musa e referência quase insubstituível que lançou os melhores compositores das músicas de tom confidencial do ritmo que ganharia o mundo. Nos 30 anos seguintes, até morrer de câncer no final dos 80, sempre esteve no topo das paradas de sucesso.
Nenhuma das duas mudou um fio de cabelo ou puseram laquê para chegar onde chegaram. Nara só gravou o que quis, mesmo quando optou por Roberto Carlos e teve forte oposição de seu séquito. Danuza brilhou como dona de casa e depois promoter que deixava seus maridos e os outros brilharem.
Quando Nara morreu de um câncer, depois de seu pai por suicídio e o filho repórter da Globo Samuca, por acidente, ela entrava nos 50 e na fase em que, segundo diria em sua autobriografia, a gente começa a perder. Mas tinha ainda outra vida pela frente e no mesmo diapasão.
Como o vestido que não tinha e improvisou, já meio cansada de ter ido a todas as festas, como dizia, também disse que não sabia escrever para o editor que lhe sugeriu um livro de etiqueta. Só podia ser, para quem vivia de receber e promover gente sem parecer a mais importante do salão.
Rabiscou o que sabia num caderno em espiral e entregou ao editor, na espera de que ele providenciasse um redator para dar ordem aos rabiscos. Pois ele leu e disse que o livro estava pronto como tal e assim seria publicado.
Como a Bossa Nova de Nara, Na Sala com Danuza, publicado no início dos 90, virou referência em tom de confidência de como se comportar. Substituía a frescura e os bons modos fabricados dos manuais de Socila pelo bom senso lastreado em simplicidade e bom humor.
Você podia ser e comportar como quisesse na sala, na mesa ou nos encontros, mas desde que não fosse chato. A base era a educação que vem de casa, que abominava o pedantismo, a afetação e o desrespeito. Um carnaval de sabedoria mundana cheio de ironia:
— Perguntar a idade de uma mulher é crime, só que ainda não previsto no Código Penal. Ainda.
— Se você encontrar outra pessoa com uma roupa exatamente igual à sua, o que fazer? Sem perder o humor, chame o fotógrafo e peça para registrar a cena histórica.
— Nunca tente roubar a empregada de sua amiga, essas coisas não se perdoam.
— Se a sua babá te convidou para ser madrinha de casamento, nada de ir simplesinha, com medo de chocar. Vá superelegante, foi para isso que ela te chamou. E não se esqueça de mandar de presente o mais caro dos eletrodomésticos. Foi para isso também que ela te convidou.”
— Tratar uma pessoa mais velha por você é uma coisa que, contrariando todas as regras, costuma alegrar muito o coração de um idoso.
— Quando te perguntarem “Oi, tudo bem?” não engrene com um “Ah, minha filha, com uma gripe!” e aí, os detalhes. Sobretudo, não diga o nome dos remédios que está tomando.
— Cuidado com o dedinho ao segurar qualquer xícara. Ou um copo. Se ele insistir em levantar, use um esparadrapo ou Superbonder.
O manual em tom de violão e banquinho a projetou para substituir no ainda honorável Jornal do Brasil o colunista de política, cultura e comportamento que parecia insubstituível, Zózimo Barroso do Amaral. Dali para colunas em outros grandes jornais e oito livros sempre ousados, sem nunca ter deixado a impressão de que sempre quis ser jornalista.
Tinha trocado definitivamente as roupas de brilho por camisetas simples, crachá e bloquinho de “profissional de imprensa” que vestia meio com orgulho nos eventos da noite.
Sua assistente no JB, Isabel de Luca, conta que ela deixava os amigos assistindo o espetáculo de fotos de Copacabana, da varanda de seu apartamento, no Ano Novo, e ia correr os bailes vestida de jornalista e bloquinho.
Confessou a Ruy Castro, o grande biógrafo de Carmen Miranda, Garrincha e Nelson Rodrigues, que resistiu a fazer uma biografia dela ainda viva, sobre os três maridos da mesma profissão:
— Acho os jornalistas divertidos. Chegam tarde em casa, têm certas vantagens do poder, mas não se deslumbram e sabem de tudo antes dos outros.
Me parece aí sua chave: a simplicidade, a intuição e esse fairplay dos jornalistas que, como ela nos bailes e salões, gozam e gostam da intimidade do poder sem parecer que a deseja e pretende usá-la. Nos melhores da profissão, com distanciamento crítico.
Alguém já ensinou antes dela que o jornalista sério não deve se aproximar demais de sua fonte para não ser cooptado e nem se afastar demais que perca a notícia. Ouço Danuza sugerindo, como numa de suas frases, que não se deve tocar e ficar a mais de 50 centímetros do interlocutor, salvo se estiverem indo para o motel.
O jornalista, à luz da intuição de Danuza, me parece o cara que está sempre querendo ir para o motel com o poder, mas que deve manter a equidistância, a integridade e o fairplay.
Não deve ser só coincidência que um dia tenha recebido um político importante na redação e perguntado às gargalhadas à sua assistente Isabel de Luca, assim que ele saiu:
— Será que eu dei pra ele?
Aprendi muito com os três livros que li dela, sobretudo a autobiografia Quase Tudo, de 2003, onde ela confessou, para surpresa de todo mundo, que tinha chegado aos 70.
Parecia improvável para aquela jornalista de camiseta e crachá ou paquerando em Paris com a mesma disposição com que, quase 60 anos antes, tinha se enrolado no pedaço de seda verde para ir ao Copacabana Palace.
Dos ensinamentos de Na Sala com Danuza, além do que não se deve usar palito de dentes nem dentro do banheiro, com a luz apagada, levei para a vida o de jamais ser chato, nas rodas de conversa, nos primeiros encontros e até no ato de escrever.
Posso até ser e encher o saco do leitor por incompetência, mas nunca por consciência. A ideia de não chatice, que herdei dela, tem também a ver com simplicidade, coloquialidade, respeito com os diferentes e uma integridade de quem pode até estar errado, mas sendo sincero.
Ah, e que gosta de poder também. Mas gosta mais do jeito dela, que era também o de Nara, de estar perto dele sem se deslumbrar. Porque tudo passa. E a gente, como elas, também morre.
> Publicado no Estado de Minas, em 25/6/2022.
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