Poucos jornalistas brasileiros terão recheado o seu baú de tão grandes e históricas entrevistas com grandes personalidades do mundo político e cultural quanto Geneton Moraes Neto. Deve ter sido o primeiro e único a entrevistar Nelson Rodrigues (foto Álbum de Família/O Dia) durante uma partida da seleção brasileira, no caso, contra o Peru, em 1978. O maior dramaturgo brasileiro que faria 100 anos nesta quinta-feira (23) tinha como ofício até a morte em 1980 assistir partidas de futebol e escrever sobre elas em crônicas memoráveis, então em O Globo.
Daí por que o jornalista não entendeu que ele tivesse marcado a entrevista com um pernambucano anônimo para a mesma hora do jogo. E muito menos que ele lhe desse atenção quase absoluta no transcorrer da partida sobre a qual deveria comentar na coluna do dia seguinte.
– Tirem o som desse aparelho! Tirem o som desse aparelho! O Brasil me faz mal! O Fluminense me faz mal! – bradou de mão no peito, descalço e de suéter sobre uma camisa de mangas curtas, teatral, quando o moço disse que poderia voltar depois.
A mulher e a irmã do dramaturgo obedeceram e a entrevista transcorreu em silêncio, interrompida apenas nos três gols, Zico aos 34 do primeiro tempo e Reinaldo, que entrara no lugar de Nunes, aos 20 e 40 do segundo.
– Que coisa beleza, que coisa beleza! Esses rapazes são uns gênios! – foram suas únicas opiniões sobre o jogo.
No dia seguinte, o repórter correu à banca para ler o comentário do maior e mais brilhante cronista esportivo do país e estava lá:
“Vejam vocês como o futebol é estranho – às vezes maligno e feroz.Mas não quero ter fantasias esplêndidas. O jogo Brasil x Peru, ontem, no Mário Filho, não assustou a gente. Diz o nosso João Saldanha : “O Brasil fez seu jogo, jogo brasileiro”. Vocês entendem? Não há mistério. O brasileiro é assim. Quando um de nós se esquece da própria identidade, ganha de qualquer um. Outra coisa formidável : na semana passada, um craque nosso veio me dizer : “Nélson, é preciso que você não se esqueça: ao cretino fundamental, nem água”. O jogo foi lindo”.
Porque Nelson Rodrigues nunca precisou muito da realidade para as grandes sacadas que distribuiu por peças, folhetins e principalmente as crônicas produzidas numa vida dedicada a interpretar como ninguém um jeito suburbano de ser do brasileiro, que transcendia as solteironas gordas e as viúvas tristes da zona norte onde cresceu (“Somos um país de vira-latas”.) Vítima de todas as tragédias possíveis – irmão assassinado, tuberculose, filho deficiente, família inteira perdida numa enchente – parecia ter incorporado um espírito de tragédia que o impelia a buscar sentido e transcendência nos mais banais atos humanos. E procurar mais a intenção que o gesto, filtrar a realidade com uma lente mais penetrante e menos alcançável que os demais.
“Toda pelada é de uma complexidade shakespeariana”, dizia com o tom hiperbólico e dramático com que pontuava suas frases. A alguém que lhe contestara a opinião sobre um pênalti, com o argumento de que não fora isso que o videotape mostrara, sentenciou: “o videotape é burro”.
Daí porque condenava os jornalistas da era do copydesk, que enxugava as reportagens dessa profundidade de intenções que talvez só ele visse. “Hoje, a reportagem de polícia está mais árida do que uma paisagem lunar. O repórter mente pouco, mente cada vez menos.” Eram os “idiotas da objetividade”, “cretinos fundamentais” capazes de resumir uma peça de Shakespeare “em duas linhas de 20 toques”.
“É a falta de complexidade do sujeito que diz só a coisa certa ou aparentemente certa e não vê que todo fato tem uma aura. A verdade é que o fato só, em si mesmo, é uma boa droga. O Diário Carioca não pingou uma lágrima sobre o corpo de Getúlio. Era a monstruosa e alienada objetividade. As duas coisas pareciam não ter nenhuma conexão: o fato e a sua cobertura. Estava um povo inteiro a se desgrenhar, a chorar lágrimas de pedra. E a reportagem, sem entranhas, ignorava a pavorosa emoção da população. Outro exemplo seria ainda o assassinato de Kennedy. Na velha imprensa, as manchetes choravam com o leitor. A partir do copydesk, sumiu a emoção de títulos e subtítulos. E que pobre cadáver foi Kennedy na primeira página, por exemplo, do Jornal do Brasil. A manchete humilhava a catástrofe. O mesmo e impessoal tom informativo. Estava lá o cadáver, ainda quente. Uma bala arrancara o seu queixo forte, plástico, vital. Nenhum espanto na manchete. Havia um abismo entre o Jornal do Brasil e a cara mutilada. Pode-se falar na desumanização da manchete”.
Transposta para seu teatro, essa visão das intenções que desprezava o gesto deu em peças aparentemente contraditórias, porque paradoxais, entendidas como mera pornografia, embora carregadas de sentimentos pesados.
“Perdoa-me por me traíres” diz o título definitivo sobre o homem que se sabe da culpa pela traição da mulher. Assim como “A Dama do Lotação” se deixa levar por qualquer passageiro de ônibus para preservar o espaço casto de amor com o marido. Em Os Sete Gatinhos, toda uma família se prostitui para garantir o casamento puro da filha virgem. E que coisa mais estranha era o patriarca de Álbum de Família questionando à mulher se ela seria capaz de amá-lo a ponto de arranjar-lhe concubinas.
Trágico, desesperado, nascido e crescido num ambiente de traições e assassinatos, Nelson Rodrigues achava o sexo algo sórdido, a negação do amor, e parecia buscar uma profissão de fé funda no amor como saída para restaurar a dignidade humana. Era um “anjo pornográfico”, na sua melhor tradução, aproveitada por Ruy Castro no título de sua biografia.
– Toda oração é linda. Duas mãos postas são sempre tocantes, ainda que rezem pelo vampiro de Dusseldorf.
– Todo tímido é candidato a um crime sexual.
– Sou um suburbano. Acho que a vida é mais profunda depois da praça Saenz Peña. O único lugar onde ainda há o suicídio por amor, onde ainda se morre e se mata por amor, é na Zona Norte”.
– O adulto não existe. O homem é um menino perene.
– Não vou para o inferno, mas não tenho asas.
– Sexo é para operário.
– Veja só: no princípio da minha infância havia o pacto de morte. Havia sujeitos que se amavam tanto que já não suportavam mais o próprio amor.
Dificilmente o paradoxo encontrará seu melhor sentido em 100 ou 1.000 anos.
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