E mais quatro notas sobre o voto útil, o debate inútil, o Semipresidencialismo que poderia nos salvar e o fiasco da marquetagem bolsonarista no nordeste
Quis o destino que um padre fake, Kelmon, preenchesse a cota de extraterrestres que tornam mais divertidos os debates de presidenciáveis no Brasil, esse jogral infantil de respostas cronometradas que só serve à audiência das emissoras.
Vem apimentar mais um pouco a celeuma da manipulação da religião por política que alimentou — e ainda deve alimentar até o voto na urna — o embate da questão de costumes que opõe as campanhas dos polarizados Lula e Jair Bolsonaro.
Contra a vontade do primeiro, que tentou a todo tempo puxar a discussão para a questão econômica, até o momento em que a economia começou a melhorar e percebeu que o discurso contrário estava aumentando sua rejeição entre os evangélicos.
Correu atrás do prejuízo para provar que acredita em Deus desde criancinha. Passou a pontuar seu discurso com referências a Ele e um pouco mais. Já dentro da dança, neste domingo, chegou a dizer, com certo risco, que “pastor que segue Bolsonaro não acredita em Deus”.
Deveria ter ficado na economia, assim como Bolsonaro deveria ter evitado a provocação se olhasse para o próprio umbigo. Deus, Família e Propriedade, bem com os valores que os alimentam, não caem bem na boca de nenhum dos dois.
O primeiro, porque é refém de lideranças de esquerda, na maior parte intelectuais, sabidamente ateus (“a religião é o ópio do povo”), que rechaçam o modelo de família tradicional (“a família é opressora”, como dizia Paulo Freire) e relativizam a propriedade (“toda propriedade é um roubo”).
O segundo, porque fala em Deus na mesma frase em que defende tortura, uso de armas e morte de criminosos e adversários. Seu conceito elástico de família não coaduna com o tratamento e a educação que deu a suas mulheres e seus filhos. E o de propriedade é prejudicado por uma visão patrimonialista de acúmulo às custas de dinheiro público.
Por conveniência, nenhum dos dois consegue ou tenta explicar direito suas posições. Lula não vem a público dizer com todas as letras que gays também podem construir uma família cristã. Bolsonaro, que a família tradicional do macho provedor é um anacronismo.
Nada me soa mais falso do que o uso de Deus pelos dois, embora não duvide da fé de ambos. Como aquele católico relaxado que confessa os pecados na missa de domingo para continuar tratando mal a empregada na segunda, só usam seu santo nome em vão para ganhar uns pontos nas pesquisas e nas urnas.
E acresce que não se pode ter certeza do grau de tolerância da sociedade com determinados valores ou a transgressão deles. Ela é majoritariamente conservadora, sim, como a maioria dos humanos, herdeiros de tradições e costumes de séculos.
Mas há pesquisas de sobra comprovando que, apesar de contra pautas transgressoras como aborto, casamento gay e educação sexual precoce, é tolerante com união homoafetiva, aceita os bonitos atores pelados nas novelas da Globo, ama Anitta, Pablo Vittar e os machões sensíveis de Pantanal.
É mais complexa e aberta que seus candidatos. Que, num mundo ideal, deveriam ficar calados sobre essas coisas, se não têm coragem de tratá-los com profundidade.
Eu preferia que ambos e as campanhas adversárias se ocupassem de desconstruí-los no que têm de mais perigoso que corrupção e transgressão sexual: o aparelhamento da máquina pública para perpetuação silenciosa do poder.
Sobretudo Lula, refém de uma militância intelectual sofisticada, convencida da tomada do poder pelos intestinos das instituições públicas e conquista das mentes, como o fazem com muita competência na universidade pública.
Pesquise na internet dois documentos aterrorizantes sobre suas propostas de controle da sociedade, o Plano Nacional de Direitos Humanos (decreto 7.037/2009, de Lula) e a Política Nacional de Participação Social (decreto 8.243/2014, de Dilma).
A grosso modo, em 521 alterações na Constituição, propõem controle das instituições a partir da substituição das decisões do Congresso por “novos mecanismos deliberativos a cargo de movimentos da sociedade civil organizada”.
Seria de alto interesse público que o processo de desconstrução do candidato passasse por medir-lhe o pulso a respeito dessas duas obras de arte.
Pontinhos de ET na reta final
Padre Kelson pode repetir Cabo Daciolo, o ET dos debates de 2018, e arrancar mais uns pontinhos preciosos nas pesquisas que podem prejudicar os planos da campanha lulista de liquidar a fatura no primeiro turno.
Não só por ele. Simone Tebet e Soraya Thronicke, mais alguns por conta dos últimos dois debates, o de sábado passado no SBT e o de quinta próxima na Globo. Ciro deve ficar onde está, porque não há escavadeira que o remova do lugar.
Não vejo sinais de que Lula ou Bolsonaro venham a ganhar ou ser prejudicados, salvo um desempenho desastroso que não parece à vista. Basta pequeno controle de danos para saírem no empate.
Lula é melhor de debate e vai ficar dois dias se preparando. Bolsonaro foi bem no último, no sentido marqueteiro de manter a calma, reagir bem às perguntas e propagandear os feitos do governo.
Fora dos debates, a pancadaria para desconstruir a imagem dos dois, muito competente por ambas as campanhas, pode fazer o jacaré fechar a boca, na feliz expressão sobre a aproximação da posição dos dois nas pontas dos gráficos das pesquisas, em direção a um empate técnico.
Nas duas últimas semanas, ele tinha bocejado, em outra expressão feliz, de Fernando Gabeira. Os resultados dos institutos mais respeitados alargaram a diferença para uma média de 12 pontos e 48% de votos válidos, em favor de Lula. Que ainda tem a preferência da maior parte dos 21% de indecisos ou que ainda podem mudar o voto.
Torço para que haja segundo turno. Apesar de estar esgotado como toda sociedade brasileira, ansioso para que se resolva logo essa pendenga e nem disposto a estar neste espaço para ver, é preciso desnudar mais os dois líderes.
Lula, sobretudo, que quer um pix em branco e precisa ser cobrado a explicar melhor o que vai fazer. Provar que não ficará refém do seu entorno de tentações totalitárias, ninho dos ovos de serpente dos dois documentos citados mais acima.
Voto útil e voto fascista
Embora pessoalmente Lula tenha tomado cuidado, pregando contra a abstenção para disfarçar sua campanha por voto útil, sua militância corre solta para cima dos votos de Ciro Gomes e Simone Tebet, em tons indigestos.
O movimento é natural na reta final de toda eleição, quando boa parte dos indecisos e dos eleitores dos candidatos menos votados nas pesquisas opta pelo que tem maior potencial de vitória.
Muito pela sensação de parecerem certos, que alimenta o efeito manada, e outro tanto para acabar logo com a angústia em que se transforma todo pleito na reta final. Só quem gosta de segundo turno é a minoria bovina envolvida até os cascos nas campanhas.
Nesta eleição, acrescente-se o alto grau de esgotamento de todo mundo com o clima miserável de ódio que veio sendo construído há pelos menos dez anos, desde as manifestações do Vem Pra Rua, em 2013. E, de novo, a antipatia com o modo PT de chantagem.
Parte da sua militância mais influente (de novo, a intelectual) tem a impressionante arrogância, quase homogênea e incurável, de se julgar acima do bem e do mal, referência de liberdade e democracia, apesar de todas as evidências em contrário.
Todo mundo que não vota em seu candidato, só no seu, faz o jogo do fascismo e fascista é. Como a dizer que, se Lula vencer com 51% dos votos, teremos outros 49% de fascistas na população.
Se tem algo para o que a ideia do voto útil acabou servindo nessa reta final, foi a desconstrução de Ciro Gomes. Acabou se revelando mais transtornado do que vinha se mostrando e eliminando suas últimas possibilidades de composição com qualquer lado, inclusive o próprio.
Sai das eleições sem condições de conversar até com seus partidários. Paris pode ser, como nunca foi, sua melhor opção no segundo turno. Se houver.
Semipresidencialismo para nos livrar dos dois
O Congresso discute a sério desde março uma proposta de implantação do Semipresidencialismo, com expectativa de aprovação ainda este ano, segundo o desejo do presidente Arthur Lira.
Pela primeira vez, o assunto é tratado a sério numa comissão especial de deputados com um conselho consultivo de juristas de peso a favor, como Michel Temer, Nelson Jobim e Ellen Gracie. Boa parte de Brasília gosta da ideia.
Num modelo mais atenuado do que o parlamentarismo puro, como em Portugal e na França, o presidente manteria mais alguns poderes de intervenção, como o poder de veto dos projetos, além de dissolver o Parlamento e convocar eleições em momentos de crise.
Seria a sopa no mel para tirar o poder dos presidentes da República, no momento em que não convém dá-lo a nenhum dos dois líderes das pesquisas. Não entregar a horta para os cabritos, como se dirá, mas chamar o Congresso à responsabilidade e desburocratizar as crises.
Infelizmente, não seria para valer nos dois próximos mandatos. Para evitar a pressão contrária de quem vencer a eleição no próximo domingo, a Proposta de Emenda Constitucional pertinente prevê a implantação só a partir de 2030.
Mesmo assim, terá dificuldades, mesmo que acabe havendo um consenso quase impossível das lideranças de Lula ou de Bolsonaro, que terão interesses diferentes, independente de quem for o vencedor.
O líder do PT na Câmara, Reginaldo Lopes, já começou a pregar contra. Teme, com boa dose de razão, que, à última hora, o rolo compressor em plenário aprove uma emenda antecipando sua validade para o ano que vem.
E onde anda o gênio Carlos?
O infortúnio de Jair Bolsonaro no nordeste é a prova mais acachapante de que a pretensa genialidade de Carlos Bolsonaro como marqueteiro político era um blefe.
O filho 03 foi o grande responsável pela vitória do pai em 2018, pelos disparos em massa para milhares de grupos no WhatsApp, uma simplificação do que havia aprendido com Steve Bannon, na campanha de Donald Trump.
Só que a coisa lá era mais sofisticado: o impulsionamento micro-segmentado por classes e desejos de mensagens bem estruturadas no Facebook, em muitos casos negativas, para públicos específicos.
Foi determinante plantar na região da ferrugem, da indústria automobilística, tradicional reduto dos democratas, como o nosso ABC paulista, mensagens detradoras sobre a moral da adversária Hillary Clinton e seu marido suspeito e mulherengo Bill.
Numa transposição para o Brasil, fosse Carlos o mesmo gênio e soubesse se utilizar das condições tecnológicas hoje, estaria fazendo o mesmo ou parecido no nordeste. Onde não há nada, nem reza brava, que reduza o prestígio de Lula.
Seria preciso muito mais do que um Carlos Bolsonaro — hoje perdendo espaço para um arrivista do seu tipo, Janones — por trás do marketing da campanha bolsonarista.
>Publicado no Estado de Minas, de 27/9/2022
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