Sem medo de dizer seu nome, direita deixa um passado de omissão, cresce como militância no anacronismo da esquerda e se consolida como força que Lula não domina
Lula teve uma semana difícil, diante da nova saraivada de ataques de Ciro Gomes. Não porque o pedetista tivesse agregado novidade na guerra que abriu contra ele há mais de um ano nas redes sociais, em bordoadas piores, como as deste vídeo.
Mas porque contou pela primeira vez com o holofote considerável de um grande veículo de imprensa, O Estado de S. Paulo, em longa entrevista em que cutucou os fantasmas que mais assombram o petista.
A saber: a corrupção sistêmica de seu governo, o fiasco econômico da sucessora que impingiu ao país e, pior dos constrangimentos, a denúncia já aventada por seu marqueteiro João Santana, hoje de Ciro, de que conspirou para desestabilizá-la até o impeachment.
Dilma Rousseff amplificou o petardo para outros veículos da grande mídia ao reagir, e Lula deu uma resposta sobre a hipótese de debilidade mental do candidato do PDT, que só sinalizou seu desconforto.
Deixou a impressão de que o cerco se fecha, que o sonho de uma campanha fácil polarizada contra Bolsonaro começa a ruir e que vai enfrentar uma desconstrução que pode assombrar mais que perder a eleição.
Não por Ciro, que o comentário político vem erroneamente atribuindo uma disputa pelos votos da esquerda. Claro que ele briga pela vaga de Bolsonaro na centro direita, no mínimo por não ser burro de achar que poderia ter votos do lulopetismo batendo em Lula desse jeito.
Não tanto também pela campanha cerrada de corrupção, principal carta na manga de seus adversários. Nem por sua responsabilidade pelo desastre econômico que não adianta jogar no colo de Dilma. Menos ainda pela ideia difícil de provar de sua traição a ela.
Seu principal adversário, a par da militância desastrosa que tem, é a de direita que nunca teve.
A que o carregou alegremente no colo, desde a euforia do Lula-lá em sua primeira disputa pela presidência da República, em 1989, ficou velha, redundante, ultrapassada no discurso, nos métodos e nas tecnologias de comunicação.
Ainda defende uma luta de classes do século XIX, uma economia estatizante dos anos 50 do XX e uma guerra cultural de costumes dos 60.
Não sabe como se defender das denúncias de corrupção e, depois de perder o monopólio das ruas, patrocina invasões coloniais do MST contra a modernidade do agronegócio e a favor do desconforto da maioria.
Sua caduquice ficou mais patente no uso da internet, que inaugurou nas guerrilhas virtuais do início do governo Lula. Fazia bom uso dos instrumentos da época, sites, blogs, compra de jornalistas e influenciadores, ainda que as campanhas eleitorais se mantivessem no modelo 1.0 de caixa dois e produção holllywoodiana para TV.
Ainda estava por aí na campanha de Fernando Haddad em 2018, quando foi atropelada como cachorro que caiu da mudança pelo tsumani da campanha bolsonarista de mensagens em massa e um exército de seguidores orgânicos que ainda viria dar provas de sua vitalidade nas manifestações monstro do último 7 de Setembro.
Gastava pouquíssimo para os padrões até então vigentes e investia alto nas mais modernas técnicas de manipulação de mentes e corações, a partir de micro-segmentação de dados das plataformas de mídias digitais. As mesmas que deram suporte à revolução conservadora no mundo, desde a vitória do Brexit, a eleição de Trump e a de vários outros candidatos de extrema-direita.
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Velha e desatualizada, até pouco tempo essa militância ainda usava o discurso de 20 anos sobre o controle da mídia tradicional. Onde, como sabe qualquer adolescente, não é mais onde está o poder. Nenhum grande veículo de comunicação sobrevive sem as redes sociais, que as potencializam em repercussão e verbas publicitárias.
Sua estratégia de reação às denúncias de corrupção é, data venia, burra, contaminada do mesmo tipo de luta ideológica de guerrilha para a tomada de poder que lhe atrapalha desde sempre a percepção da realidade e do bom senso.
Quando não cai no método infantil de adestrar militantes, como no manual anunciado recentemente para responder às denúncias com os mesmos vícios pela pela presidente do PT Gleisi Hoffman, a mesma que afirmou que “o PT tem moral para discutir corrupção”.
Um tipo de negacionismo cego que, na forma mais complicada, ao modo muito petista de ser, tenta desqualificar provas de três instâncias, adversários de amplo respaldo popular como Sérgio Moro e a inteligência da plateia.
Nada pior que chamar o interlocutor de idiota, como o faz com recorrência impressionante, quando o bom senso recomendaria um mínimo da estratégia básica da humildade e do braço a torcer. Que a grande mídia cobra como “autocrítica”.
Ainda que com as meias verdades típicas do discurso político.
— Olha, eu errei — diria Lula. — Avaliei mal os benefícios que recebi em palestras ou melhorias de imóveis que frequentei de ex-fornecedores do governo, achando que não haveria crime depois de ter deixado a Presidência. Mas considero que já paguei caro por isso, mais do que qualquer barão da elite brasileira, em 580 dias na cadeia. Ainda posso pagar nos processos que correm e não me importo de ser preso de novo se assim a Justiça entender certo. Mas, como nada impede que eu seja candidato, peço uma trégua ao país para mostrar que posso consertá-lo. Depois, me prendam de novo. Etc.
Não podendo fazer mea culpa que soe humilde e honesta, que ficassem quietos ou respondessem sumariamente: “Lula será julgado pela Justiça”. “Ou por Deus”, sei lá.
Carcomida, essa velha militância até poderia empurrá-lo bem na eleição, à custa de bom dinheiro em campanha, não tivesse que enfrentar agora o fato novo e massacrante da nova direita que perdeu a vergonha de dizer seu nome.
A ampla maioria da sociedade foi sempre majoritariamente conservadora, religiosa e um tanto quanto constrangida diante da libertinagem das novelas da Globo, do pé na porta dos movimentos gays, das greves sindicais e das invasões do MST, que engolia calada pela vergonha de parecer reacionária ou anti social.
Sua última participação homogênea num protesto de rua havia sido na grande Marcha com Deus pela Família e a Liberdade, nos estertores do governo João Goulart. Foi arrastada um tanto constrangida para os movimentos pelas Diretas-Já, em 1984, e pela derrubada de Collor, em 2002.
A direita que a representa só atuava em época de eleições, crente no velho argumento do capital posto a serviço de candidaturas, ou no lobby também remunerado nos bastidores dos poderes, entre uma eleição e outra.
Sempre teve até os governos Lula o poder formal majoritário nas instituições tradicionais — Executivo, Congresso e Judiciário — e desconfiava que tinha o poder da grana que ergue e destrói coisas belas para domar a imprensa e a indústria cultural.
Historicamente, para parecer bonitinha e moderna no bom tom de ser de esquerda, patrocinou artistas, publicações e espetáculos empenhados em criticar o capitalismo e a opressão das elites, como é da natureza das obras de arte. Sem perceber a contradição de fomentar uma máquina subreptícia de transformação social contra seus valores e interesses.
Nunca achou que precisasse ir às ruas para combater o tipo de poder subterrâneo que aparelhou as instituições contra seus valores empresariais e morais. Traduzido a grosso modo na burocracia paralisante que demoniza seus negócios e na apologia de uma pauta de costumes — direitos humanos, aborto, casamento gay, liberação das drogas, cotas raciais e afirmação de minorias — que não é sua prioridade.
Seu ponto de inflexão veio nas revoluções da primavera árabe pelo Facebook no início da última década, seguidas do movimento Vem Pra Rua em 2013 e das grandes mobilizações pelo impeachment de Dilma, em 2015, embaladas pelos cursos e pregações de Olavo de Carvalho.
Na campanha de Jair de Bolsonaro, alavancou das tias e caminhoneiros do WhatsApp a intelectuais e toda uma elite cultural também sem medo de se dizer conservadora contra os descalabros do PT e da falta de autoridade da esquerda para patrulhar como nos seus bons tempos.
Bolsonaro teria uma reeleição fácil se não tivesse depauperado de forma tão rápida e tão estúpida esse manancial de apoio que tomou de uma vez por todas o monopólio da esquerda nas ruas e nas redes sociais.
Não só por volume e capilaridade. Mas num movimento organizado em consequência e espírito, que abandonou Bolsonaro mas não a ideia de um outro mundo longe das tentações e distorções do esquerdismo.
Que se disseminou numa batelada de sites, páginas, perfis, canais e influenciadores, dos mais malucos aos mais profissionais, com alguns milhões de seguidores por cabeça. E contaminou, de veículos tradicionais de imprensa, como a Gazeta do Povo de Curitiba e a rádio Jovem Pan, a jornalistas da velha guarda entrincheirados em publicações de claro viés conservador, como O Antagonista de Diogo Mainardi e a Revista Oeste de José Roberto Guzzo.
Um dos melhores sintomas de seu crescimento é que, como na velha esquerda, correntes de direita passaram a brigar entre si em divergências em torno dos mesmos objetivos: o estado liberal de livre iniciativa, democracia e competição.
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Ao velho modo da práxis comunista de ocupação dos espaços por dentro do sistema, depois do fracasso da luta armada, a direita vem fazendo seminários e publicando livros, criando editoras, logística de distribuição e apoios a escritores e influenciadores, num movimento acelerado para o qual a esquerda parece ainda não ter acordado.
A prova é de que nunca a mídia tradicional de vocação liberal progressista e o sistema de poder em torno dela, que marca cerrado os maluquetes de alta audiência, se sentiu tão ameaçada quanto desconectada das pautas da maioria. Num fenômeno muito parecido com a reação conservadora puxada nos EUA pela Fox News, ainda no início do século, que deixou para trás e a nu o descompasso do mainstream liberal midiático.
Essa nova direita já passou da fase de quem perdeu o medo de dizer seu nome. Sabe que há uma lavagem cerebral chamada “hegemonia de esquerda” a combater na imprensa, na indústria do entretenimento e nas universidades e uma guerra por mentes e corações a vencer, se quiser se consolidar.
Seu verdadeiro teste de fogo, em que estará mais bem organizada do que esteve em 2018, é a próxima eleição presidencial.
É difícil acreditar que Lula possa enfrentar esse tsumani mais estruturado, sem a mesma competência tecnológica, a mesma capacidade mobilizadora e um discurso de acordo com o novo espírito do tempo. Confortável que parece estar ancorado na sua velharia ou em pautas que a maioria não quer.
Além da roupagem vermelha que remete a regimes ultrapassados e já complica bastante sua vida nessa nova ordem, acho complicado que possa ser bem sucedido se sair defendendo aborto, afirmação de minorias e invasões para denunciar a insensibilidade social das elites. Reverencio sua generosidade, mas não deve funcionar na próxima eleição.
Desconfio que até possa ir por aí, mobilizando e falando para dentro da sua militância para se isolar como candidato da esquerda no primeiro turno. Confiante de que desmobilizará e desfalará tudo quando for para o segundo, a seu velho modo de colocar a peãozada na rua e negociar por cima depois.
Se eu fosse ele, avaliaria se convém apelar de novo a essa velharia. Ou velhacaria. Considere que não existe mais o silêncio acanhado da direita que o favoreceu por omissão durante toda a sua carreira. Ela está vigilante e influente como nunca, 24 horas por dia, não só mais na eleição. Além de Ciro, é claro.
> Publicado no Estado de Minas, em 19/10/2021
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