A mídia tradicional é por natureza uma chata e vive na contramão da vontade da maioria.
A desconstrução impiedosa de Sérgio Moro é o mais recente exemplo de sua vocação para nadar contra a corrente majoritária da sociedade. Que, neste caso, não aparenta nenhuma dúvida de que se trata de prêmio de loteria a nomeação de um homem como o juiz da Lava Jato para comandar um radical programa contra a corrupção e a violência.
— Estamos todos muito felizes — resumiu Janaína Paschoal, a deputada mais votada do país, do lado dos convencidos acima de qualquer dúvida razoável de que o presidente eleito Jair Bolsonaro fez a coisa certa.
Nos últimos dias, foi um festival de firulas, desimportâncias, contorcionismos, plantação de notas maldosas e simplificações para tipificar a escolha quase como um atentado ao estado de direito.
Destaco sete acusações ao juiz pelo crime de ter aceitado o Ministério da Justiça, que pulsaram no noticiário e nas especulações filosóficas de analistas consagrados:
- Ter dito anteriormente que jamais aceitaria um cargo político.
- Ter divulgado delações antes das eleições, apesar de não trazerem novidade, com propósitos claramente políticos.
- Ter colocado em risco o trabalho da Lava Jato.
- Ter aberto a possibilidade de aumentar a conflagração com o STF, de onde partiram reversões de seus atos.
- Ter aberto um flanco para dificultar as relações com o Congresso, hoje (mas não no ano que vem) coalhado de réus.
- Ter o perfil de quem não deve ser ser contratado porque não pode ser demitido.
- Ter já embolado a sucessão presidencial de 2022, para uma candidatura já favas contadas.
Nem os líderes do PT, que acusam o juiz de ter operado conscientemente antes da eleição para virar ministro, fariam melhor e com mais sutileza. Nem a revista Carta Capital, que o chama com non-sense de “cabo eleitoral”.
Minha tese bastante trivial é que o juiz jamais recusaria um convite para a Suprema Corte, sonho de 11 de cada dez promotores e juízes, e entendeu o convite para o Ministério da Justiça como pré-condição, embora não explícita. Não poderia recusar e ainda previu a possibilidade de fazer um grande trabalho no Ministério.
Mas a mídia tradicional não gosta de explicações triviais.
Mídia dúbia
Essa velha imprensa, carinhosamente chamada hoje de mídia tradicional para não se ser mais duro, sempre operou assim, ou quase, aqui e no mundo.
O confronto de teses antagônicas é sua forma de construir ideias e conhecimento, somada a seu sentido de missão, pretensiosamente “cão de guarda”, de mostrar que o rei está sempre nu. Daí que, sim, está tudo muito bem, está muito bom, mas… mas lá vem porrada.
Vem de longe a tradição de que ela tem que ser do contra. Imprensa é oposição, o resto é publicidade, já se escreveu a rodo. Todo o governo é inimigo, a ser tratado a tapas e pontapés, como disse em frase famosa um dos maiores jornalistas do passado, Ivan Lessa.
Essa abordagem dicotômica, que vem do princípio sagrado de se “ouvir sempre os dois lados”, embutiu entretanto uma certo conforto para a falta de coragem de não tomar partido e da vergonha de parecer adesista,”chapa branca”, numa expressão antiga.
No mundo complicado de ontem, em que era bonitinho ser de esquerda, do bem, e no de hoje, da praga do politicamente correto, o intelectual jornalista ou analista tem vergonha de elogiar, no medo de que possa ser interpretado como parcial.
Só listo um jornalista dos melhores publicados, Elio Gaspari, capaz de elogiar, ainda que forre seus elogios com alguns “mas”, essa expressão maldita que torna inútil quase tudo o que se falou antes dela.
No restante, sites e impressos dos veículos tradicionais estão cheios de colunistas respeitados que usam a dubiedade como essa sinalização de imparcialidade amedrontada. Um jeito tucano de ser, digamos.
Um grande exemplo é o respeitado Kennedy Alencar. Pegue em seu site o artigo que analisou a indicação de Moro, para conferir seus contorcionismos para admitir a relevância política da indicação e bater pesado nas suspeitas de que Sérgio Moro cometeu erros absurdos ao aceitar.
Ao admitir numa linha que a nomeação foi um gol de Bolsonaro, emenda um parágrafo para dizer que ela enfraquece a Lava Jato e fortalece críticas a uma agenda política de Sérgio Moro. E alinha um monte de opiniões desfavoráveis de juristas, outra forma muito comum do método dicotômico de terceirizar a opinião.
Nem pegue a Veja, que pespegou na capa o título “A pirueta de Sérgio Moro”, sem deixar de fazer um monte das suas para confirmar a tese, na matéria interna.
Mídia fora de moda
O estilo, velho e piorado pela degradação financeira dos veículos, parece estar caindo de moda.
Explica em parte o crescimento de seu descrédito nessa maioria convencida de estar do lado certo, mas que não vê sua opinião traduzida nos órgãos de comunicação em que um dia respeitou.
Daí que vai em massa para as mídias alternativas, onde, para o bem e para o mal, produz a própria informação e monta seu bunker de resistência que só agrava a debilidade de dona tradicional.
Quem entendeu bem isso, como Jair Bolsonaro depois de Trump, tratou de cultivar a relação com seus próprios canais e contribuiu na munição que a desmoraliza a cada dia. Avesso a entrevistas, repórteres, fotógrafos, poses com papagaios de pirata para aparecer nos jornais da noite, ele parece nem um pouco interessado nela.
Para onde ela vai, ainda é matéria de especulação e assombro. Diante de governantes que tendem cada vez mais a desmoralizá-la, porque é bom negócio, aprofundar a investigação parece ser o consenso que se forma entre os profissionais da área. Nada por enquanto, ainda, sobre uma forma de tomar partido sem medo e sem deixar de ser honesto.
É uma equação difícil para quem se habituou a tratar os governos a tapas e pontapés.
PS – Da velha guarda do jornalismo escravo do princípio de “dar os dois lados”, também ainda sou velho como essa mídia. “Mas”, como se diz quando se quer dar o “outro lado”, vou me questionando.
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