Michael J. Fox fez o garoto irresistível que viajava ao passado e causava uma confusão dos diabos ao fazer a garota que viria a ser sua mãe apaixonar-se por ele. Teria que dar um jeito de fazê-la se apaixonar pelo babaca que viria a ser seu pai, sob o risco paradoxal de não nascer. “De Volta Para o Futuro”, de 1985, um dos melhores filmes de adolescentes, teve duas sequencias e fez dele um dos namoradinhos da América.
Em 1991, aos 20 anos, foi diagnosticado com Mal de Parkinson precoce e, em 1988, teve que abandonar o papel no seriado Spin City. A doença neuro degenerativa que destrói neurônios, debilita a voz e provoca uma desordem nos movimentos, começava a corroer as matéria-primas do seu trabalho. Passou a dedicar-se a uma fundação destinada a financiar pesquisas com células-tronco que pudesse ajudar pacientes com problemas similares e fez algumas aparições irrelevantes em alguns filmes para a TV.
Pois em 2011 ele roubou todas as cenas numa participação especial no seriado The Good Wife, um sensacional thriller de tribunal que lava a roupa suja do mundo altamente desonesto dos escritórios de advocacia de Chicago. Como Louis Canning, um advogado que se apresenta para defender os moradores de uma comunidade afetada pela contaminação de uma multinacional de pesticidas.
Até aí tudo bem. E se esse advogado for cínico, estiver fazendo o jogo de cavalo de troia da multinacional, para forçar um acordo posterior? E se ainda por cima tiver uma discinesia provocada por Parkinson, que pode ser causada também por exposição a agrotóxicos? E pior? Usar a doença em benefício de sua causa para atrair a piedade dos jurados ou tirar-lhes a atenção enquanto a advogada dos moradores atingidos estiver em ação?
Pois foi o papel que os criadores Robert e Michele King e os produtores Ridley e Tony Scott escolheram para ele. Gaguejante, trêmulo, cheio de cacoetes típicos da doença, ele transita pelo salão do júri exibindo suas deficiências motoras e argumentos aos tropeços. Sentado, se remexe e se embaralha com jarra e copo d’água, exagerando na mise-en-scène que vai puxar para si todas as expectativas, ali ou mundo afora, por onde passa esse seriado refinado em suas escolhas.
Para o telespectador, há o prêmio adicional de saber que ali se trata do próprio Michael J. Fox em cena. E parte do deleite em vê-lo está em tentar antever até que ponto ele será capaz de separar-se de seu alter ego e dar-lhe a verossimilhança necessária à credibilidade da trama.
Entendido isso, fico pensando na grandeza de quem criou o personagem, de quem o convidou para fazê-lo e dele em aceitá-lo. E de toda a criatividade para tratar do assunto com objetividade e sem um pingo de comiseração. Sim, ele tem a doença, e daí? Na pátria do livre arbítrio e da liberdade individual, o que o impede de viver, trabalhar, fazer pontas em seriados e eventualmente até fazer uso dela se lhe aprouver? O fato de ser doente não lhe dá, a priori, o passaporte para avocar a piedade ou a culpa alheia.
A certa altura da sequencia, a advogada Alicia Florick, a maravilhosa Juliana Margulies que é alma e olhar crítico do seriado, protesta e leva o problema com todas as vírgulas para o juiz. Diante da tribuna, naquela cena típica em que o magistrado chama os advogados para um puxão de orelhas em sigilo, os dois discutem os limites éticos de usar elementos totalmente estranhos aos autos para seduzir ou distrair os jurados. A doença, no caso.
– My God. Com o tempo, eles acabam se acostumando, doutora – se defende Canning ou Michael J. Fox.
No Brasil, seria mais ou menos como se um advogado negro (Milton Gonçalves, sei lá) se oferecesse a um grupo de estudantes para propor uma ação por cotas raciais também nas faculdades particulares. No meio do julgamento, se descobriria que ele, inescrupuloso, estaria fazendo o jogo dos donos das faculdades. A advogada, quem sabe a Christiane Torloni, se aproximaria do venerando juiz (Francisco Cuoco? Lima Duarte?), levantaria sua suspeição pela cor e questionaria o uso de sua condição para desviar o assunto para questões fora dos autos.
Seria uma forma instigante e quase arrebatadora de tratar de assunto tão empolgante. Mas é querer demais.
Nesta terra de dramaturgia indigente, em que se tenta proibir livros infantis e leva-se o politicamente correto ao pé da letra, é sabido que não há personagens imperfeitos e nem espaço ou inteligência para se discutir suas imperfeições sem cair no maniqueísmo. Muito menos em se tratando de negros.
Milton Gonçalves aceitaria?
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