Magrelo e esperto, o molequinho arregaça as manguinhas da camisinha de malha branca e chuta a lata do tamanho de um leite Ninho com uma força impressionante nos gambitos.
O engolidor de fogo moreno, atarracado e sem camisa, acode para proteger seu instrumento de trabalho, onde guarda a querosene com que faz seus malabarismos no sinal da esquina. Trava punhos e sobrancelhas para conter a raiva ou ralhar com o piralho, mas é todo doçura:
– Não faz isso com a lata do pai, filho.
– Seu?
– É.
– Único?
– Não. Tem mais uma menina de oito com aquela lá, minha esposa.
Estico o pescoço para avistar a moreninha miúda encostada no poste do outro lado, calça jeans uns dois números menores do que a sua necessidade, segurando a mão de uma magrelinha de vestido estampado com a cara do franzino chutador de lata.
– Bela família.
– E tem mais um na Bahia. Mas de outra mãe.
Apesar da barriga pressionando a calça curta amarrada a barbante na cintura, peito e ombros largos, vê-se que é jovem ainda para tanto. O olhar inquieto e a tinta vermelha formando um losango do queixo à ponta do nariz, sobre uma pele lisa, lhe dão ar de menino brincando com fogo.
– Quantos anos?
– 23.
– Novo.
– Na Bahia, a gente tem muito filho. Lá é dez em cada família.
– Tá dando pra levar?
A moça do caixa do mercadinho chega com quatro notas de 10 e duas de 5 com a intimidade de quem está acostumada a lhe facilitar o troco de vez em quando, sem que ele precise entrar na loja nos seus trajes de trabalho. Ele devolve uma de 5.
– Pega um sabonete pra mim.
Ela vai entrando de volta, enquanto grita, já lá dentro:
– Qualquer um?
Ele não tem dúvidas, também alto:
– Dove.
– E me responde meio atrasado, olhando para os lados: – Claro que dá pra levar.
Grita para a mulher vir pegar o pequeno, ajeita a lata e vacila entre voltar ao trabalho no sinal ou esperar a moça com o sabonete. E eu fico imaginando aquele rapaz em outra situação, bem vestido, deambulando por corredores de supermercado, perscrutando as gôndolas de sabonete. Até testar um deles com a mão, alisar, apertar, experimentar a sensação tátil de curtir uma embalagem anatômica e bonita. Dove, veja só.
Nesse admirável mundo novo das mil oportunidades em cada esquina, engolidores de fogo escolhem sabonete. Preocupa–se com o arroz, o feijão, o pão e a carne, certamente, mas se permite o direito de escolher um sabonete. Não quer qualquer um. Quer Dove.
– Boa sorte – despeço. E vou saindo.
Me lembro de um tempo, não muito longe, em que as pessoas se negavam a dar esmolas para mendigos ou acrobatas de sinal no argumento de que “essa gente quer dinheiro pra comprar cachaça”.
– Se quer um pão ou um prato de comida, eu dou – diziam com autoridade pernóstica, como se estivessem mesmo dispostos a dar pão e comida se a fila aumentasse.
Mas aí veio o discurso da questão social e dos direitos humanos, o triunfo do pensamento politicamente correto, e pouca gente ralha ou se mete a dar lição de moral a mendigos ou acrobatas, estejam ou não pedindo esmolas para comprar pão ou sabonete.
São novos tempos. E é bom se acostumar com eles.
– Ajuda aí, chegado! – ainda o ouço gritar, passando um boné diante dos para-brisas.
Com a ascensão dos pobres, a valorização do dinheiro que profissionalizou a esmola, as taxas de emprego sempre insuficientes para uma população que não para de crescer e, por fim, a aceitação tácita do trabalho de rua, convém saber que o sujeito cuspindo fogo ali na frente do seu carro não está mais pedindo esmola e não trabalha só para comprar pão.
É um trabalhador de rua, produtor de riqueza, enquadrado em algum target de pesquisa de consumo, consumidor dos mil e um desejos produzidos pela publiciade, e tem o direito de escolher, apalpar e comprar o seu sabonete preferido.
Dove.
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