Suspense competente faz maniqueísmo com vilão de desenho animado e apelos de melodrama para acentuar a denúncia contra a fase mais brutal da ditadura militar
Eu tinha planos de ver, mas não de escrever sobre o Marighella de Wagner Moura, até que soube do choro de uma sobrinha no final que tem provocado aplausos e apupos de “Fora, Bolsonaro, Genocida” em algumas sessões, como na que fui.
Queria conferir a fascinante engenharia de manipulação do roteiro que faz com que um filme seja mais impactante do que outros. E especular de que forma minhas considerações podem ajudar jovens como ela a diferenciar fantasia de realidade, ficção de história, política de literatura, militância de reflexão.
Carlos Marighella, político e escritor que optou pela luta armada contra a contemporização de parte de seus companheiros no PCB, é apresentado como o mártir que enfrentou a ditadura militar no início de sua fase mais brutal, entre 1968 e 69, a custo de sacrificar carreira, amigos e família em nome do ideal de salvar a pátria.
Como nos melhores arrasa-quarteirão, é a jornada do herói compelido a sair de sua zona de conforto por uma situação injusta e posto diante das piores provações até o fundo do poço. De onde emergirá até o clímax em que terá que decidir seu destino para um final não necessariamente feliz, mas sempre moral.
Tem todas as manhas de roteiro hollywoodiano, com seus pontos de virada nos lugares certos, liberdades poéticas para ajeitar um pouco a história e o tempero dos conflitos que levam pessoas como a minha sobrinha às lágrimas, independente de que tenha ou professe alguma ideologia.
Há o apelo dramático da ruptura inevitável em nome do ideal com a mulher apaixonada e o filho apaixonante. O lar perfeito a que, como em toda grande história, tentará voltar quando já não é mais possível, porque todas as pontes foram implodidas.
Também como em todo melodrama de cortar os pulsos, carrega a mão no drama com o filho que terá que abandonar, em nome de sua segurança, depois de momentos idílicos na praia. Ou nas cenas em que este assiste à prisão truculenta do pai ou o impede de novamente ser preso, quando percebe que o havia atraído para uma armadilha.
Com algumas das liberdades poéticas, mal ou bem intencionadas. O filho não era mais criança (16 anos) no tempo em que o ensina a nadar no filme e não assistiu sua prisão. Armado, ele teria reagido ao cerco final que resultou em duas mortes e uma pessoa ferida, apesar de sozinho, e não sido metralhado unilateralmente.
Para acentuar a crueldade do mundo mau (a ditadura militar) contra o herói idealista, amoroso com a família, leal com seus camaradas e generoso a ponto de aconselhar casados a desistirem, há o contraponto indispensável do antagonista bruto.
O delegado mau como picapau, que prende, espanca ou mata, jovens, velhos ou padres, na presença ou não de crianças, que também costuma torturar. Sem família, sem dúvidas, sem generosidade com os colegas tratados a tabefes, sem nuances. Profundo como um pires.
É um filme indiscutivelmente competente, em que tudo funciona redondo, do ritmo ao elenco afiado, num cenário de época e figurinos cuidadosos, para arrebatar mentes e corações em seu projeto político.
Que é do que se trata, com todos os recursos dramáticos à disposição, de forma a tornar mais eficiente a denúncia contra a opressão e a tortura de fato brutal da ditadura militar, no seu período de maior recrudescimento.
Seu pequeno equívoco como peça política foi ter optado por um ator negro no papel do protagonista, na vida real descendente de um italiano com mãe filha de escravos, mais para branco do que para negro.
Não haveria problema na opção se atendesse, como se informou, à vontade de dar o papel a Seu Jorge, arrasador. Mas não para fazer apologia de justiça racial, que não estava em questão e não cabe no propósito de denúncia do filme.
Há um diálogo longo e desnecessário, de um dos padres cúmplices, ensinando que Jesus foi embranquiçado pelos interesses dominadores do Ocidente. Um apêndice sem nenhuma relação com a luta política, as relações da época e a crítica da ditadura, a que se propõe.
Seu grande equívoco como peça dramática foi dar o caráter de vilão de desenho animado ao delegado malvado, no objetivo de amplificar a maldade para acentuar a injustiça contra seu herói martirizado.
Acabou num tom maniqueísta de obra para ser assistida e entendida em jardim de infância, não fosse a violência obrigatória, e sem espaço para dúvidas sobre a natureza política e militante de suas intenções artísticas.
Não há problema nisso. Há grandes diretores de ficção claramente militantes e revisionistas históricos sem medo de parecer parcial, como Oliver Stone, de Platoon, Nascido a 4 de Julho ou JFK, entre tantos outros.
É o caso de Moura, disposto a acrescentar mais uma às tantas obras de revisionismo do período militar, mais do que revisado em livros, documentários e muita ficção de qualidade, mais ou menos no seu mesmo tom de reescrever a biografia de perseguidos pelo regime. Com mais ou menos heroísmo.
(Dá para contar em um só dedo o número de obras dispostas a uma análise das razões do regime, como “1964 – O Brasil entre Armas e Livros”, da Brasil Paralelo, em que se enfatiza que João Goulart foi derrubado por civis, não pelos militares, como informa o filme no letreiro inicial. Os militares embarcaram em seguida.)
Se não há problema, também é verdade que coloca em perspectiva a sua limitação de diretor, ex grande ator que deu vida a anti heróis de carne, osso e nuances psicológicas, como o Capitão Nascimento de Tropa de Elite e o Pablo Escobar, de Narcos.
Fosse tão sofisticado quanto o ator, optaria por um vilão mais humano no seu filme, a fim de fazer uma autópsia mais abrangente da ditadura, em que não haveria só bandidos e mocinhos. Mas vítimas em geral de um período obscuro.
É o que tenta por exemplo com mais generosidade O Que é Isso, Companheiro?, de Bruno Barreto, adaptado do livro em que Fernando Gabeira, ex-guerrilheiro e um escritor alguns decibéis mais honesto do que Wagner Moura, faz uma autocrítica de sua geração.
O quanto seria enriquecedor tentar abordar, mesmo que de passagem, as motivações dos torturadores, que se sentiam tão ou mais patriotas que os terroristas. Que também rezavam, ouviam música ou pensavam nas crianças, como o de Os Campeões do Mundo, da grande peça teatral do grande comunista Dias Gomes.
Que conjunto de crenças ou que metabolismo psicológico leva pessoas de carne e osso, chefes de família comuns, às maiores barbaridades? Como no nazi-facismo, com que ele certamente gostaria de relacionar, como alusão ao governo Bolsonaro a que tem desancado nas entrevistas.
(Me remete a O Porteiro da Noite, um pequeno filme sobre o reencontro de uma vítima do holocausto com seu torturador, porteiro de um hotel, que diz muito mais sobre a desgraça do nazismo que muitos filmes pesadões e de produção milionária, como A Lista de Schlinder, por exemplo. O quanto uma pequena peça conflituosa sobre um torturador dividido faria pela denúncia do quanto o regime militar transformou pessoas em monstros?)
Obras de alto quilate colocam o protagonista, mas também o antagonista, no confronto com suas ilusões. O premiado Sargento Getúlio, de João Ubaldo Ribeiro (filme de Hermanno Penna com Lima Duarte), é a história de um capanga honrado que leva preso o adversário de seu coronel, até o meio caminho em que recebe uma contra ordem e se confunde com as razões maleáveis da política.
O delegado vivido com igual competência por Bruno Gagliasso ganharia muito em estatura e efeito denunciante se fosse apanhado em seus conflitos, seus aprendizados, suas ilusões. Como Moura faz mais ou menos com Marighella, mais para menos, aferrado que está em colocá-lo como um idealista sem dúvidas.
Agregaria mais drama e reflexão de alto quilate sobre a devastação moral do regime sobre homens e mulheres decisivos ao destino do país em determinado ponto da história, no topo ou no pé da pirâmide, do lado de dentro ou de fora do cárcere, apesar do desenvolvimento material que capitaneava.
Perderia, naturalmente, o tom político, que é a intenção primeira do grande ator que estreia na direção. Com mão firme, competente, mas carregada de apelos sentimentais e militância para, como Marighella, consertar o país à sua imagem e semelhança.
Será benvindo que faça outros, mesmo que seja no tom. Há muitas encruzilhadas cruciais a eviscerar com sua narrativa bem orquestrada de anti heróis na contramão da história. Antes e depois do regime militar, nos governos de antes ou depois, de direita ou de esquerda.
Desde que seja minimamente honesto e estejamos atentos para entender suas verdadeiras intenções e separar verdade de liberdade poética para fazer militância.
> Publicado no Estado de Minas, em 16/11/2021.
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