Petista dobra partido para salvá-lo de sua irracionalidade e não ser presidente de uma facção, mas até que ponto só contorna o curto prazo para enrolar a direita?
Na última semana, o PT compareceu com um programa de governo a seu jeito meio anos 50, sem incluir as propostas até mesmo dos aliados à esquerda. Era querer demais que incluísse as da centro-direita com que tenta se compor de má vontade.
Ao mesmo tempo, embora no seu direito, bateu pé pelas candidaturas mais radicais e sem futuro de Fernando Haddad e Edegar Pretto, em São Paulo e no Rio Grande do Sul, contra as mais viáveis de Márcio França e Beto Albuquerque, respectivamente.
No primeiro caso, Lula exerceu sua autoridade para avocar a palavra final sobre o programa junto com Geraldo Alckmin, depois de incorporada a visão dos demais partidos da coligação. No segundo, emitiu sinais de que as candidaturas petistas não são prioridade nos dois estados.
É a racionalidade política mínima diante do realismo básico tantas vezes emitido por ele de que não dá para ganhar eleição e governar só com a esquerda e afrontando os valores de uma sociedade majoritariamente conservadora que ainda rejeita fortemente o seu partido.
É bê-a-bá que não precisa ser um Lula para enxergar, mas que continua meio miragem para o partido de velhos comunistas calejados na luta de classe, no sindicalismo anos 40 e na ocupação de espaços. Que ficou velho, de ideias e campanhas velhas, e não sabe.
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A julgar pelo programa, o partido continua na crença no Estado paizão que tudo paga, contra controle de gastos, reformas, responsabilidade fiscal, o empresariado e a liberdade de aplicar como quiser no mercado financeiro.
Num rápido e revelador trecho de sua visão do passado, propõe “superar o estado neoliberal” que só existe na cabeça deles ou ajudaram a implantar em seus últimos governos e “acabar com a volatilidade da moeda”, que só pode ser proibir a especulação de curto prazo na Bolsa.
Não é uma ideia de estudantes, mas de velhos estudantes. Não é surpreendente que o programa tenha saído da cabeça de um monte de gente bem formada, reunida na fundação do partido, Perseu Abramo, sob comando e liderança de Aloizio Mercadante, um dos jovens antigos da agremiação.
Na mesma semana, uma das badaladas esperanças e símbolos de renovação do partido, Fernando Haddad, deu entrevista ao Roda Viva, onde deixou transparecer a velha demonização da zelite, a coisa mais velha e rançosa que cultivam.
Haddad é um bom funcionário público que, como seus pares, vê no gasto público a solução para todos os problemas. Mas sua visão de economia é de dar dó. Acredita mesmo que o empresariado é o bicho-papão que não paga mais ao funcionário porque não quer e que o consumo é que traz riqueza, não o contrário.
Ao explicar melhor sua frase também reveladora de que São Paulo “é o bunker de certa mentalidade econômica”, diz que o empresário é “curto prazista” que só pensa no balanço do final do ano e não na valorização do empregado que a médio e longo prazo vai produzir consumo.
Alguém precisa lhe ensinar que empresários desatentos ao balanço quebram e pagam os salários disponíveis no mercado se quiserem ter empregados. Se engenheiros ou pedreiros estão escassos, pagam 10. Se estão sobrando, pagam 1.
Não vão pagar menos, porque não iriam conseguir braços, nem a mais porque também quebrariam. Seus concorrentes com força de trabalho mais barata reduziriam seus preços, como fazem os chineses concorrendo ali na esquina.
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Também tem dificuldade de dizer no programa como vai cabalar o voto do interior, onde o eleitorado é ainda mais conservador, fechando o arco de irrealidade bem cara do partido diante da nova geopolítica.
Tem boa vontade, é simpático e conciliador, mas ainda não descobriu como e parece ignorar que boa parte do conservadorismo vem da elite empresarial que chama de insensível e focada no lucro de curto prazo.
“Menino bom que gosta de pobre”, no dizer de Lula, Haddad não tem o perfil mais votável em São Paulo do que o de Márcio França, que ocupou o governo do Estado. Tem mais recall do estado inteiro e nenhum ranço de esquerda, embora seja, por conveniência e conjuntura, do PSB.
Da mesma forma que Edegar Pretto, um originário do MST que chama o ex-governador Eduardo Leite de “privatista a serviço do Deus mercado”, tem menos cara de vitória do que Beto Albuquerque, deputado federal do PSB com passagens por secretarias de Estado que lhe deram mais recall.
E Marcelo Freixo é uma aposta ruim no Rio de Janeiro, onde fez um longa carreira pelos direitos humanos cujo combate projetou a direita de Jair Bolsonaro e a maledicência cruel de que cada bandido morto é um voto a menos para ele.
Freixo é um problema para o esforço de alianças de Lula, que não à toa trabalha para ter o ex-prefeito César Maia (ex-DEM e atual PSDB) como vice. Ao mesmo tempo que dá ultimato aos candidatos do RS e não acha ruim que Márcio França também saia candidato em São Paulo.
Lula é quem, sempre, no fim das contas, salva o PT de sua irracionalidade. Vai desautorizando aqui, contornando ali, impondo acolá. Jogando muito, inclusive com o próprio partido, cuja adolescência insuperada é meio culpa dele.
Não teria pago o desgaste interno de atrair Geraldo Alckmin se não tivesse visto à distância que não teria chances isolado numa candidatura só à esquerda.
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Sabe o mínimo que o partido deveria saber, que vai precisar muito mais da direita do que da esquerda para governar. Vai enfrentar o congresso do Centrão, com 300 proprietários de terra afinados com Bolsonaro, e uma direita geral que vai começar a contestar o resultado das urnas assim que elas se fecharem, caso vença.
Sempre antes do que seus partidários, como sempre, ele anda vendo que não pode ser o presidente só do PT, como o partido sempre acreditou e continua acreditando, apesar do bonde da história ter passado e não ter percebido.
A questão para os que estão de fora e torcem para que isso seja verdade é até que ponto esse Lula se faz desgarrado do PT só para uso de curto prazo, como o cordeiro que vestiu na eleição de 2002. E que esteja jogando o país como joga com o partido que não deixa amadurecer.
Pelo seu histórico de colocar ou deixar a peãozada criar problema para aparecer com a solução conciliatória, é razoável supor que possa ter mandado ou deixado vazar o programa para criar a celeuma que viria a apascentar. Lula e PT tocam de ouvido.
Neste caso, começará fazendo um governo de conciliação, como é necessário, ou não consegue bater um prego. Mas, assim que estiver confortável na cadeira, começa a ser o presidente do programa divulgado às pressas. Com o qual, diga-se, tem grande afinidade e divergência provisória.
(Pode voltar com o imposto sindical que o programa divulgado parece disfarçar em “modernização das negociações coletivas” e dar dinheiro para o MST retomar suas invasões.)
Se estiver jogando, de novo fingindo que não é PT para voltar a sê-lo na hora conveniente, é uma pena. Perderá a oportunidade de ser o presidente suprapartidário, estadista, de que o país precisa nessa hora difícil e para o qual é de fato um dos mais preparados.
> Publicado no Estado de Minas, em 14/6/2022
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