Do que li, vi, interpretei e traduzi, o resumo da ópera é o seguinte:
- Os dois abaixo-assinados que estão na praça a favor e contra o habeas corpus para Lula têm seus méritos, porque prisão em segunda instância não é incompatível com trânsito em julgado depois da terceira e da quarta instâncias. O condenado pode ser preso, mas pode ser solto por recursos às últimas instâncias.
- O inciso LVII do artigo 5º da Constituição, em que se aferram os defensores de Lula, diz expressamente que “Ninguém será considerado culpado antes do trânsito em julgado de sentença penal condenatória”, após esgotados todos os recursos nos tribunais superiores, mas não pode ser lido isoladamente.
- Juristas respeitáveis dos dois lados, incluindo Gilmar Mendes e Sérgio Moro, advogam que uma leitura holística da Constituição e do “conjunto normativo” relativizam a presunção de inocência que o trânsito em julgado pretende preservar. Tanto que o artigo 283 do Código do Processo Penal permite prisões em determinadas condições durante o processo de investigação.
No voto com que defendeu a prisão após segunda instância, que bombou na internet, Gilmar Mendes fala que à medida que se sobe as instâncias do devido processo legal — em que alguém passa de investigado a denunciado e depois condenado —, vai havendo uma, nas suas palavras, “derruição da presunção da inocência”, no espírito de interpretação dos países mais civilizados. Mais ou menos o que diz Sérgio Moro na aula com que abre sua entrevista no Roda Viva. - A famosa decisão do Supremo de 2006, que mudou o entendimento do trânsito em julgado, estabeleceu que nada impede que a pena comece a ser cumprida após a condenação em segunda instância. Impede, mas não obriga. Há lá um “salvo recurso suspensivo”, que alguns juristas atribuem a uma manobra esperta do Supremo, já que a terceira instância, o STJ, nega 99% dos recursos suspensivos. Colocar um recurso na prática inviável é uma forma de esgotar o direito de defesa na segunda instância.
- Não foi à toa que alguns ministros do STF continuaram a soltar presos após a decisão de 2006, a exceção de Rosa Weber, contrária à tese mas radical quanto à vontade da maioria. Para ficar num caso fora dos interesses políticos, ficou famoso o caso do goleiro Bruno, condenadíssimo por assassinato, solto por Marco Aurélio Mello. Na mais esclarecedora de suas declarações, Gilmar Mendes disse em Portugal que o que era para ser opção virou obrigatoriedade. A prisão em segunda instância virou regra quando deveria ser possibilidade.
- Não quer dizer que assassinos e pedófilos passariam a ser soltos no novo entendimento, porque o mesmo arcabouço constitucional — o “conjunto normativo”— alegado para manter a prisão após condenação em segunda instância tem salvaguardas suficientes para manter a prisão em determinados casos. Ou soltar quando o condenado não oferece risco físico para a sociedade, notadamente nos casos de corrupção. Como bem lembra o jurista Lenio Streck em um grande artigo no site Consultor Jurídico, Supondo que um ministro do Supremo seja condenado em segunda instância por algum azar da vida, matou ou roubou, ele gostará de ter à disposição o arcabouço que lhe assegura defesa até o trânsito em julgado.
- Nesse arcabouço, Lula poderia já ter sido preso na fase de investigação, quando protelou audiências ou andou pregando desobediência civil em praça pública. Pode ser preso, a se firmar o entendimento que ora se coloca, como pode ser solto por bons antecedentes: réu primário, ex-presidente da República, razões humanitárias que servem para velhos até como Maluf. E etc.
Donde que a ideia de se colocar o pedido de habeas corpus de Lula em julgamento, atribuída a Celso de Mello num conselho a Carmen Lúcia, pode não ter sido tão ruim.
Discute-se o habeas corpus isoladamente sem sacrificar o entendimento que se pretendeu com a decisão de 2006. Como a presidente não quer colocar a pauta as chamadas ADCs que questionaram aquela decisão, o habeas corpus se atem a um caso específico. Ainda que seja específico demais.
Se salvarem-se todos, resumindo, se pacificará que prisão após condenação em segunda instância não é incompatível com trânsito em julgado e que Lula pode ser preso ou solto dependendo da interpretação do cipoal de leis que nos governa.
Que, apesar das torcidas a favor e contra, nenhum dos dois lados pode ser massacrado por pensar diferente. E que a situação de Rosa Weber, o pêndulo da balança que pode decidir o futuro de Lula hoje, não me parece tão difícil como se anuncia.
E, finalmente, se juristas a favor e contra, sobretudo os do Supremo, com seu juridiquês e sua linguagem século XIX, podem ser condenados, é mais por problema de comunicação: mais por serem ilegíveis do que por serem sectários.
Embora, claro, sejam sectários também.
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