Entenda o modus operandi retórico com que o petista encanta plateias e entrevistadores, mas como o utiliza para pregar a luta de classes e escamotear a verdade
Costumo dizer que Lula é para mim como pizza de alcachofra. Atraente e chique como ser de esquerda. Faço força de gostar, mas tem elementos que me descem mal e me impedem de pedir de novo.
Já era encantador e está ficando melhor depois de velho, como no baile que deu na entrevista de 2h20 ao Podpah, na quinta-feira, que chegou a impressionantes 6,5 milhões de visualizações em 72 horas, não por seus olhos azuis.
É capaz de mesmerizar o espectador com uma conversa de cozinha tão rica de exemplos, provas de vida e ensinamentos que soa como um programa de auto ajuda de possibilidades reais. Quando não é contestado, como no caso, melhor ainda.
Tem um modus operandi retórico infalível para estabelecer cumplicidade com plateias e entrevistadores, num tripé sobre conhecimento de exemplos práticos, metáforas vistosas e resiliência. Em geral, em sete passos:
- Nunca dá uma resposta sofisticada, que não possa ser entendida por pessoas com a idade intelectual de funkeiros como os donos do canal,
- canaliza a maioria das questões para o maniqueísmo das elites contra os pobres,
- dá nome, rosto, objetos, cenários ou números exuberantes a exemplos acachapantes de injustiça,
- faz metáforas vistosas para emoldurar a cena,
- compara com alguma experiência dura de vida sua, que demonstre sua afinidade com a desgraça dos pobres,
- emenda um discurso de resiliência e
- conclui com uma piada.
Nessa toada, gasta só cinco segundos para explicar as causas reais do aumento de preços, para emendar logo que empresários se aproveitam porque não lêem a Bíblia. Sergio Moro o condenou porque é um mentiroso e o mundo é injusto porque a elite representada pela direita só pensa em rico e em seu patrimônio.
Faz referência a ricos de bairros chiques paulistanos, Jardim Europa e Morumbi, em oposição a velhos passando fome na rua. Trilhões sendo gastos com bancos e guerras em contraste com 800 milhões de famintos no mundo e 19 milhões no Brasil.
Lembra que vestia galocha para atravessar a viela de barro miserável em que viveu, sonhava com chicletes que não podia comprar ou o pão com mortadela e tubaína que pôde pagar com seu primeiro dinheiro de engraxate.
Dá a volta por cima disso tudo com exemplos de como superou o pavor de falar em público e da primeira vez que enfrentou a cúpula dos maiores líderes mundiais sem falar uma palavra além do português.
Depois de se colocar como cidadão do mundo, que já trocou figurinha com Fidel Castro, Barack Obama e Rainha Elizabeth, desce até uma brincadeira/provocação com os entrevistadores ou a equipe que o acompanha, como fazem os cantores de rock com suas bandas.
Em geral sobre futebol, comida (“você ainda vai comer a sua mortadela”) e, mais recentemente, namoro, aproveitando a presença da namorada Janja.
— Esse estúdio de vocês é um muquifo como o do Stuquinha — refere-se ao fotógrafo Ricardo Stuckert, que o acompanha desde a Presidência.
Na soma, encadeando tudo, coloca-se com alta eficiência no lugar das vítimas e se mostra como exemplo de que é possível enfrentar as adversidades, poderosos inclusive, e sair da miséria. Mais do que isso, como Cristo, tem ele mesmo como vencer para que todos sejam salvos.
A piada é para que se lembrem de quanto é bacana, um cara que, apesar de tudo o que passou, ri da própria desgraça. Não tem remorso e é grato aos que o apoiaram, até quando preso.
Como o herói de ficção que foi ao fundo do poço, de onde saiu para enfrentar os vilões e voltar para casa realizado.
— Estou preparado, estou com energia de 30 anos e tesão de 20.
No artigo que publiquei em fevereiro de 2016, quando ele tentava levantar a moral do partido em meio ao baque da Lava Jato, também no fundo do poço como ele, mostrei o quanto seu fascínio advinha do quanto se encaixava nesse herói de cinema.
Leia: O problema da jornada do herói no discurso de Lula
Minhas restrições, a nível de alcachofra, estão em que:
- Insiste na luta de classes com que ajudou a dividir o país, apelando quando preciso a simplificações grosseiras como a de que a direita governa para os ricos. Não que acredite em outra forma de produzir desenvolvimento, riqueza, impostos e emprego, para reduzir a miséria de forma estrutural, a meu ver de forma mais competente do que a esquerda.
- Finge que não faz parte da elite que condena, com a qual governou e pretende governar. Nem que tenha cometido como governante os erros que acusa nos outros. A certa altura, ao dizer que Bolsonaro acabara com o seu Bolsa Família, pontifica que é comum políticos tentarem desqualificar o que seus antecessores fizeram. Sem se dar conta de que foi o que mais fez em relação a Fernando Henrique Cardoso, a quem acusava de caudatário de todas as desgraças do país desde 1500. Deixou famosa a expressão “Nunca antes na história deste país”, mantra de uma ideia fixa de que nada prestava antes de sua posse.
- Escamoteia as respostas que precisam ser dadas sobre seus erros, a ponto de poder dizer, como tem feito no início de cada entrevista, que não há pergunta proibida. Até porque se utiliza de todos os seus recursos retóricos para desqualificar as descobertas da Lava Jato. De que se diz inocente e de processos anulados, apesar do caminhão de provas admitidas em três instâncias e de que os processos continuam em andamento.
Uma pizza Lula mais digerível passaria pela honestidade — ou o uso da humildade que esbanja na sua prosódia de encantador de serpentes — para desmontar esse edifício retórico de dissimulação. Essa pizza de alcachofra.
Explicar as diferenças reais entre suas ideias e as dos adversários, incorporar com generosidade a contribuição à sociedade de atores que não fazem parte da sua bandeja e dar um mínimo de explicação sobre as acusações que lhe pesam, pelo menos em respeito ao já sabido pela plateia.
Serviria enormemente melhor, uma pitada de tempero além da alcachofra, à aula que pretendeu dar ao público jovem do canal. Que analistas adultos oportunistas chamaram indevidamente de “uma aula de política” ou “uma aula de economia”. Com simplificações tão grosseiras, claro que não é.
Mas aí não seria o Lula padrão. Dependeria de um raciocínio mais sofisticado de que é capaz, mas que não lhe interessa. Na medida em que desequilibra o maniqueísmo que é base de todas as reviravoltas emocionais da jornada do herói com que construiu sua performance retórica.
Cabe aos jovens saber separar os temperos, ouvir outros políticos de ideias contrárias, pesquisar e considerar a hipótese de pedir uma pizza mais completa, aquelas típicas “da casa”, que tem de tudo, para todos os gostos.
Não devem, como disse Mitico, o gordinho comilão da dupla dona do canal, “pagar pau” para ele. Pagar pelo empenho de ter ido à entrevista e se esforçar para dar uma aula, sim, mas não comprar de face tudo o que ele diz. Na boa, tá ligado?
> Publicado no Estado de Minas, em 7/12/2021
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