Só desinformação e ingenuidade explicam por que o petista superestima o poder de negociação numa guerra assimétrica em que Zelensky só tem a oferecer as nádegas
Não deixa de ser curioso que a esquerda lulista, sabidamente anti imperialista, fique toda assanhada quando um símbolo do americanismo reverencie seu ídolo, como na reportagem de capa da Time desta semana.
É do mesmo tipo de viralatismo que comemorou em escala planetária a paparicada de Barack Obama no tempo em que o petista era uma curiosidade igualmente universal: “é o cara”. Como se precisasse do carimbo do grande irmão do norte para ser verdade.
Não precisava. Lula é uma personalidade mundial relevante, que comandou a maior potência abaixo da linha do Equador por oito anos com ideias meio anti capitalistas, e volta à relevância como polo principal de oposição a outra curiosidade mundial.
Por outras razões, Jair Bolsonaro atrai tanta atenção mundial quanto Lula a seu tempo. De forma negativa, porque divergentes de certa concepção ocidental contemporânea sobre sustentabilidade, democracia e direitos humanos.
Ele é um inimigo do progressismo que a imprensa da linha Time encarna. E, como Lula, um outro micro leão dourado, uma exclusividade brasileira que já frequentou muita capa de publicação importante pelo mundo.
Suas opiniões chamaram a atenção dentro do Brasil pela excentricidade de primata em extinção, único capaz de dizer com todas as letras que o bombardeado presidente da Ucrânia quis a guerra que destruiu seu país e seu povo em troca de poder postar em rede social.
— Ele quis a guerra. Se ele [não] quisesse a guerra, ele teria negociado um pouco mais. (…) Você fica estimulando o cara [Zelensky] e ele fica se achando o máximo. Ele fica se achando o rei da cocada, quando na verdade deveriam ter tido conversa mais séria com ele: ‘Ô, cara, você é um bom artista, você é um bom comediante, mas não vamos fazer uma guerra para você aparecer’.
No exagero bem a seu modo simplificador que adora uma metáfora, caiu na chamada “falsa equivalência” assacada pela esquerda contra a comparação entre ele e Bolsonaro. Na acepção, também conhecida por “falsa simetria”, não dá para comparar os dois, mas também é impossível colocar no mesmo pé de igualdade Putin e Zelensky.
A não ser às custas de muita desinformação, ingenuidade e insensibilidade. Como desejar ou fazer corpo mole para a hipótese de uma guerra, mesmo por interesse político, sem nenhuma condição de vencer e diante de um inimigo estrondosamente superior em equipamento e irremediavelmente desinteressado em negociar?
Putin deu ultimato sob condições inegociáveis, que incluía a mudança da Constituição ucraniana a respeito dos interesses da Rússia, uma exigência de submissão. Não queria parceria, mas anexação, como fez com a Crimeia, na tentação lunática de reconstruir a União Soviética. Como ainda quer partes do leste para cortar o acesso do país ao mar.
Na concepção de negociação lulista, o cara mais fraco deseja o embate sem ter o que colocar na mesa de negociações, a não ser o pescoço. É como o líder sindical que vai para uma negociação com patrões que podem demitir ou fuzilar funcionários, tendo como única arma de negociação a cabeça de seus liderados.
Ele faz na entrevista longa apologia à força das negociações para solução de conflitos, com base em sua vasta experiência de dominá-las na mesa de conversas em que sempre se sentiu confortável. Só que compara com muita facilidade as duas situações e suas assimetrias, em vários erros de avaliação.
O principal é que, a seu tempo, tinha o que colocar na mesa. Como líder operário, contra a provável guilhotina trabalhista dos patrões, podia parar uma fábrica ou várias e um país, com chegou a parar. Como presidente da República depois, tinha verbas e cargos para peitar ou manipular deputados, senadores e juízes.
Zelensky nada tem, Lula. No linguajar de bar onde é possível consumir 30 caixas de cerveja para se chegar a uma solução, como você pontificou dia desses, ele só pode oferecer as nádegas, suas e as de seu povo. Com alguma resistência, na espera de que o carniceiro do Kremlin tenha algum dia algum sentimento de piedade.
Também não é crível esperar que bastasse aos líderes ocidentais afirmar que a Ucrânia não teria acesso à Otan, como condição de evitar a guerra, como diz em outra parte da entrevista, toda pontificação sobre o valor da negociação sobre todas as coisas.
Havia uma infinidade de passos a seguir antes que a Ucrânia pudesse entrar na organização e, logo nos primeiros dias, Zelensky admitiu que a hipótese estava afastada. Não abriria mão da entrada na União Europeia, que Putin, dias depois de ataques frustrados, acabou aceitando.
Sem as duas coisas, porém, ele continuou atirando, independente da pressão em forma de boicote internacional contra o qual o mesmo Lula, como Donald Trump, Jair Bolsonaro e Reinaldo Azevedo, também já se havia posto contra.
De novo aqui, ele se apresenta muito convencido do poder da negociação para o qual os líderes ocidentais, a seu ver, parecem estar despreparados. Sugere achar simples que bastaria apenas tempo e mesa longa para caber todo mundo, em conversas infindáveis até acabar as caixas de cerveja.
Mas, como, se todas as cartas já foram colocadas e o dono da mesa não blefa, não truca, não parece ter nada a perder?
No resumo da ópera, Lula acha, como de outras vezes, incluindo aquela em que foi cogitado para secretário geral da ONU, que poderia resolver o problema do mundo a poder de negociação.
Até quem sabe, poderia. Até o ponto em que se lhe ouve, porém, ele parece mais uma figura nostálgica de um tempo que não volta mais. Como tem se comportado, aliás, em muitas oportunidades em sua campanha à presidência da República. Do Brasil.
> Publicado no Estado de Minas, em 5/5/2022.
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