Linchamento dos “sommeliers de vacina” é produto de sociedade debilitada emocionalmente por excesso de informações contraditórias, dócil a tiranetes e demagogos
O Ministério da Saúde leva em conta os percentuais demográficos do IBGE para definir o número de vacinas para cada estado. Que, por sua vez, distribui aos municípios segundo seu coeficiente populacional.
Minas Gerais recebe o correspondente a 10% da população do Brasil e mandará a Belo Horizonte o seu percentual, de cerca de 10% da população do estado.
O município também leva em conta os índices demográficos para definir as prioridades e o montante de vacinas a ser enviado aos postos.
Se tem 7% de pessoas de 35 a 39 anos, por exemplo, cerca de 175 mil pessoas, é o que terá de enviar de imunizantes aos postos.
Considerando que existam 35 mil habitantes com 36 anos (um quinto dessa faixa ou 1,4% da população), é a quantidade que os postos deverão ter disponíveis assim que abrirem as portas no dia anunciado para imunizar as pessoas dessa idade.
Não importa se AstraZeneca, CoronaVac ou Pfizer, as três sabidamente disponíveis hoje. Terão que tê-las para evitar o vexame e provavelmente o caos de negá-las por falta de doses, oriunda de um cálculo errado.
Tendo-as, não importa quem esteja na fila ou se já esteve em outras filas de outros postos. A estado ou município compete disponibilizar o quantitativo no dia marcado, checando idade e comprovante de endereço. Não decidir quem, de que CPF e de que preferência vai receber, em que horas e qual vacina.
Donde que não há problema algum em que o cidadão escolha a vacina que julga mais adequada. E que faça périplos por diferentes postos para encontrar uma das três. Se ele consegue tomar qualquer das três, estando na fila regularmente, que ilegalidade há nisso?
Não está furando fila, tomando o lugar de outra pessoa, subtraindo vacinas de outros e muito menos causando qualquer prejuízo ao estado, a não ser a ele mesmo, em cuspe e sola de sapato no périplo inútil.
Também não está incorrendo em falta de ética ou de sensibilidade social, como quer fazer crer a onda condenatória na imprensa e nas mídias sociais, que acabou resultando até em lei, em alguns municípios, para coibir o trânsito.
Não há problema ético ou de indiferença em relação ao outro e à coletividade se o comportamento não afeta o direito de ninguém, a não ser o dele mesmo ao abrir mão da vantagem de ficar livre do compromisso logo na primeira fila.
Havendo muita necessidade de julgá-lo, como parece ser uma necessidade coletiva atual, pode-se talvez acusá-lo de mal educado ou anti-social. Mas é essa é uma questão de etiqueta, relacionada aos usos e costumes, que a lei, os prefeitos e o julgamento coletivo não podem querer evitar.
Entendo que haja uma compulsão coletiva de julgamento, por informações contraditórias sobre a eficácia ou riscos das vacinas e insuficientes sobre os prejuízos de fato para a coletividade provocados pela escolha de uma das três marcas, num lote de 35 mil que dá para todos.
O problema está mais em quem julga e cobra, menos por carência do que por excesso de informação. Uma sociedade automatizada e infantilizada, que embarca com pressa e sem raciocínio em apelos moralistas e transfere o poder sobre seus direitos, mesmo os de uso e costumes, para o Estado.
Uma coisa está ligada a outra. Uma população atarantada, cada vez mais sem referências na barafunda cotidiana de informações contraditórias, numa montanha russa diária de medo e esperança, dor e prazer, acaba refém dócil de soluções milagrosas, linchamentos catárticos e de ditadores de plantão.
Me lembra Pavlov, o cientista russo que descobriu o reflexo condicionado testando mensagens contraditórias em cachorros. Alternava alimento e luz, até descobrir que, depois de atarantado por informações contraditórias, salivava de fome quando a luz acendia ou ouvia os passos de quem o alimentava.
Isso explica a cloroquina, a caça aos chamados “sommeliers de vacina” e a paizões como Alexandre Kalil. Sua estupenda votação na última eleição se deve muito à cara de papai irritado que, ao invés de explicar os limites e possibilidade de seus sistema de saúde, submetia a cidade a seus caprichos apontando o dedo acusador.
— Quero dizer ao pessoal da caminhonete cabine dupla que cartão de saúde não é vacina.
Nossa submissão a esses tipos já vinha de longe, numa tendência bovina a aceitar que fossem nos impondo um cipoal de leis para legislar onde deveria prevalecer o bom senso: lugar na fila para idosos, cuidado em agências bancárias, o que pode pegar na gôndola da farmácia, quanto furos deve ter um cinto de segurança, em que idade se pode ensinar sexo aos filhos.
Daí, foi fácil saltar para os decretos de hora de voltar para casa, entrar em bar, beber, ouvir música ao vivo, frequentar praças e estádios.
A pandemia, com seu inédito e avassalador poder de debilitar emocionalmente mediante tantos sinais trocados, só agravou nossa desorientação e nossos instintos de dependência ao Estado, a tiranetes ou a demagogos do dia, meio hipnotizados e autômatos, quase num reflexo condicionado.
Há um certo anestesiamento geral, em que parecemos cansados de duvidar ou contestar, na sensação de que nada adianta, impotentes de já mal saber o que é certo.
Temos salivado sem pensar, como o cão de Pavlov. A cada informação contraditória sobre a eficácia das vacinas e o efeito dos lockdowns, a cada possibilidade de julgamento, a cada vez que prefeitos dizem que a culpa é das pessoas que andam em camionete dupla ou escolhem vacinas.
É só acender a luz, que a gente se agita.
>Publicado no Estado de Minas, em 29/2/2021
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