Clima de guerra que começou no nós-contra-eles do petismo e do bolsonarismo contamina debate sobre guerra real e toma todo crítico como inimigo a destruir
Aclamado como romance de uma geração, mais especificamente a desencantada do pós-guerra, O Encontro Marcado de Fernando Sabino flagra quatro jovens bêbados de literatura e decepção com o mundo na Belo Horizonte dos anos 40 e 50.
Atravessam a madrugada entre delírios filosóficos e algumas molecagens para superar o tédio da província cheia de preconceitos e convenções sociais: mijam de cima dos arcos do viaduto Santa Tereza, trocam portões de casas, enterram um esqueleto da faculdade na praça da Liberdade, roubam um chapéu de vitrine na Afonso Pena.
Apanhados em flagrante, tentam sufocar o delegado com suas arengas metafísicas sobre a relatividade da culpa até que o homem da lei — com quem acabariam discutindo poesia parnasiana através das grades — coloca as coisas em termos práticos, na frase que virou adágio popular:
— Qual, meninos. Vocês são muito inteligentes, mas vão presos assim mesmo.
Penso em Reinaldo Azevedo da Band, Guga Chacra de O Globo, Luís Nassif da GNN e todos os analistas que vão fundo na análise dos condicionantes ocidentais que levaram ao ataque russo à Ucrânia e que, à primeira vista, parecem justificar a molecagem de Vladimir Putin.
Qual, meninos. Vocês são muito inteligentes, mas vão presos assim mesmo.
É aquele momento em que a discussão chega a tal enrosco e impressão de inutilidade, em que se esgotam as possibilidades e a paciência de convencer o interlocutor, que é melhor evocar o óbvio ululante que o cidadão ignorante diante da TV, delegado de seus códigos morais, interpreta com mais precisão.
Putin está errado. Simples assim.
Se tem um país que invade outro, soberano e pacífico, e põe populações em fuga, não é difícil dizer de que lado está o mal. Quem é o agressor e quem é a vítima. Quem é o bandido que optou por matar velhos, jovens e crianças, a tentar todas as outras formas de entendimento. A preferir uma vitória de pirro a um pacto honroso.
Para esse cidadão, com quem me identifico, nenhuma razão justifica a guerra. Desnecessário entender os antecedentes da Otan no patrocínio de outras invasões, se a Ucrânia ameaçou por opções que poderiam colocar em risco as fronteiras russas ou se ela pertencia ou deveria pertencer ao império soviético.
Nos seus/meus parâmetros simples, ninguém deve temer a polícia ou radares de trânsito em excesso se não está disposto a cometer crimes ou andar acima da velocidade. Se Putin fosse pacifista e não sonhasse em atacar soberanias e o direito de vizinhos optarem por seu meio de vida, não precisaria se preocupar com a quantidade de mísseis por perto.
Se minha opinião importa, sou ocidentalista, branco, cristão, heterossexual. Acho que todo progresso humano advém da liberdade para criar, duvidar e competir do liberalismo. Não acho que a Otan tenha perdido o sentido com o fim da URSS, como se diz, e deve existir enquanto houver ditadores como Vladimir Putin sem satisfações a dar a suas populações.
Mas, porém, contudo, entretanto, todavia e todas as adversativas atualmente mal vistas no debate público, é bom saber das coisas. Abrir a mente sem preconceito para todo tipo de conhecimento que possa ajudar a compreender o imbroglio, até mesmo para entender por que a raça humana é capaz de tanta barbaridade.
Faço a comparação com O Encontro Marcado, o testamento idílico da última geração que quis salvar o mundo pela literatura, menos como crítica do que como constatação desse nosso tempo perverso, em que todos parecem estar em guerra. Mesmo sob o risco de defender aqui pessoas e opiniões das quais discordo.
Defendo até a morte o direito de Azevedo, Chacra, Nassif e seus seguidores tentarem a sua explicação para tanta estupidez. Assim como defendo o direito de o humorista Gregório Duvivier — um lulista avesso a minhas convicções — escrever sobre frango à Kiev e marchinhas de carnaval sobre guerra, como fez outro dia na Folha de S. Paulo e foi patrulhado por um jornalista importante do Estadão.
(Me lembrou a marchinha de Chico Buarque: “se a guerra for declarada / em pleno domingo de carnaval / se aliste, meu camarada / a gente vai salvar o nosso carnaval”…)
Vivemos um clima de guerra pavoroso, generalizado, de desqualificar o antagonista/analista a priori, moral ou ideologicamente, como se tivesse cometendo crime de divergência. Na suposição de que a opinião contrária sempre camufla sub interesses e questões de caráter. E, isto, entre gente inteligente.
Se Reinaldo Azevedo questiona algumas ordens de fato suicidas do presidente da Ucrânia, Volodymir Zelensky, de colocar civis e presos como bucha de canhão, ele é acusado de fazer o jogo de Putin. Diogo Mainardi escreveu na Crusoé um artigo pesadíssimo (sobre chapéus, inclusive) para dizer que falta caráter debaixo do modelo panamá que Reinaldo enverga em alguns de seus vídeos.
No mesmo tipo de ilação apressada, o veteraníssimo e sempre equilibrado Carlos Alberto Sardenberg acusou Guga Chacra, ao vivo na GloboNews, de defender a invasão assim que o comentarista lembrou os avanços da Otan na Europa como uma das causas do ataque russo.
Nessa pressa, pouco importa que esses ditos “analistas realistas” já tenham dito o suficiente em outras oportunidades sobre o descalabro do invasor. É preciso reagir rápido e abatê-lo com quantas bombas morais de rotulação forem necessárias.
Românticos como Mainardi atribuem a falta de caráter questionar certas posturas da vítima, no jogo de Putin, como Reinaldo faz sobre Zelensky. Torcedor descarado de suas preferências, como a candidatura de Sergio Moro, tem um conceito de isenção que não é o de ouvir os dois lados do jornalismo tradicional. Defende uma honestidade radical que se confunde com engajamento e esforço de propaganda.
Mas não é para isso que jornalistas foram feitos. E nem podem ser constrangidos por emitir suas opiniões, por mais abjetas. Que não são, no caso. Acho abominável quem puxa e apoia o cancelamento de quem diverge.
Da mesma forma que Duvivier não tem que escrever sobre a pauta que pretendem os patrulhadores de fronteira e pode comer seu frango à kiev sem risco de colocar prédios e instalações militares da Ucrânia em risco. Como escreveu, aliás:
— Sim, ao que parece meus comentários levianos sobre frango e marchinha permitiram que tanques russos avançassem sobre Kiev. Peço perdão à população ucraniana pelo descaso.
É aquele tipo de maniqueísmo de bolsonarista que carimba na testa do crítico do governo o rótulo de petista. E vice-versa: se você tem críticas a Lula, está automaticamente carimbado como um fascista que faz o jogo de Bolsonaro. Qualquer reconhecimento à ideia de que Otan e Zelensky também jogam, num exercício de raciocínio realista, transforma o crítico num putminion.
O que produziu o fenômeno do excesso de adversativas, recurso de defesa nesse terreno minado de quem precisa falar sobre o outro lado sem parecer mau caráter. Reinaldo tem se esgotado de antecipar seus raciocínios de “mas, porém, entretanto, contudo, todavia” depois de declarações de pavor e ódio a Putin.
É bastante razoável supor que, sim, as pessoas têm carimbos na testa, por mais que tentem disfarçar suas preferências e se esforçar pela velha isenção, que, como sabem os velhos jornalistas como eu e Sardenberg, é uma miragem. Na melhor das hipóteses, somos os “isentões”, pejorativo que, nesses tempos bicudos, na linha Mainardi, sugere certa falta de caráter ou covardia.
Eu sou da linha isentão, na falta de melhor nome para explicar minha reverência a ouvir os dois lados, não para expô-los burocraticamente como artimanha de parecer isento. Mas para entendê-los de fato e traduzir minha velha convicção de que, em política, no geral, os dois lados jogam e dissimulam. Quase sempre, em doses iguais.
Somos todos reféns de convicções profundas que vieram se cristalizando inconscientemente sob décadas de propaganda cultural. Herdeiros de uma longa tradição de crítica ao capitalismo, que opõe seus acusadores e defensores há mais de 50 anos e acabou moldando duas linhas bem definidas e antagônicas de pensamento a respeito dos limites do Estado sobre a vida do cidadão.
Nós brasileiros em particular vivemos a herança cruel de 20 anos de governos populistas que transformaram a divisão da sociedade numa espécie de programa de governo. Nós contra eles. Ao um ponto terrível em que o adversário de ideias só pode estar mal intencionado. É um inimigo a destruir.
Como se chega a um ponto em que tudo é questionável e ninguém tem razão, não vejo outra forma de tentar resgatar um mínimo de racionalidade senão deixar fluir todas as ideias, com respeito e generosidade para com quem está falando. (Como isso é velho e como é tedioso ter que lembrar isso.)
Partindo do princípio, a priori, de que o interlocutor tem suas razões ou pode chegar a outra se confrontado com argumentos. Que seu carimbo na testa, mesmo insuportável, não pode ser um obstáculo a que possamos conviver e conversar. Quem sabe, trocar de carimbos entornando um chope. Ou beliscando um frango à kiev.
Ou ficamos todos burros e, por mais razões que tivermos, vamos presos assim mesmo.
> Publicado no Estado de Minas, em 8/3/2022.
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