Por um instante me deu um estalo de que o homo sapiens passou a ser de esquerda desde que deixou a vida livre de caçador-coletor, há 12 mil anos, e se meteu a mexer com agricultura.
O israelense Yuval Noah Harari infere em seu magistral Sapiens que o homem só evoluiu mesmo entre 70 e 10 mil anos AC, no que ele chama de Evolução Cognitiva.
Foi quando desenvolveu o cérebro (não em tamanho) e o uso das mãos, saiu da África e perpetrou o maior genocídio da história: matou os outros homos menos desenvolvidos (Neandertal, por exemplo) na Europa, Ásia, Austrália e Américas e dizimou quase toda a população de grandes mamutes.
Era livre, individualista e mais saudável. Caminhava quilômetros, tinha poucos filhos (não dava para carregar e amamentar) e uma refeição balanceada de caça, folhas, frutas e raízes.
Quando parou, porém, e começou a se reunir em aldeias no que veio a ser o início da revolução agrícola, passou a plantar e comer só trigo, a ter filhos anualmente para ajudar na lavoura e a ser um escravo obeso de uma ordem coletiva hieraquizada.
Passou a criar as estruturas sociais para produzir em escala, acumular, guardar, fazer trocas, pagar impostos, alimentar reis, soldados, sacerdotes e artistas.
A partir daí, como diz Yuval em um dos tantos milhares de insights desse livro soberbo que não dá para resumir, a história passou a ser tudo “o que algumas pessoas fizeram enquanto todas as outras estavam arando campos e carregando baldes água”.
Esse sacrifício do indivíduo em nome de um interesse coletivo de contradições insanáveis nunca foi resolvido e produziu a tensão permanente que, nos meus delírios de fim de semana, veio desaguar em La Casa de Papel.
A série espanhola bombou na Netflix depois de uma passagem pífia pela TV espanhola porque mexe com algo mais fundo na alma do homo sapiens do que o mero interesse por entretenimento.
Mexe com a reação calada e ancestral contra a opressão do sistema.
É divertimento de primeira, sim, de cores intensas tanto na aparência quanto no fundo, apesar de muita interpretação ruim e soluções sofríveis que não comprometem o objetivo.
Um grupo de jovens executa um bem planejado sequestro à casa da moeda espanhola para imprimir o dinheiro que vão roubar e, como não tiram de ninguém, atrair a simpatia da sociedade pela causa e denunciar um sistema injusto.
Que seria, na forma mais visível da trama, o sistema europeu que, à custa de unificar os países e sufocar suas diferenças, injetou tantos bilhões de euros nos bancos que, perto disso, o roubo desses meninos não passa de gorjeta.
A certa altura, a protagonista que negocia a rendição do grupo sem machucar os reféns, já envolvidos na causa de seus sequestradores, diz que não sabe qual o lado certo.
Um hino de soldados italianos contra o fascismo, na Segunda Guerra, Bella Ciao, cantado pelos chefes da operação e executado nos momentos mais arrepiantes da série, completa o discurso.
Como em outro caso de assalto bem planejado, o americano Onze Homens e um Segredo contra o sistema de ultra segurança de um cassino, a meta aqui é fazer o telespectador torcer pelos criminosos e relativizar a propriedade para denunciar o ridículo do sistema que está no comando.
Parece o engajamento dos intelectuais do mundo todo na guerra civil espanhola, o apoio aos jacobinhos na Revolução Francesa, a fé cega em Jesus Cristo ou a simpatia pelo líder dos escravos romanos, Spartacus, desde que se entenda como criminosos os que ousam desafiar a ordem política estabelecida.
O homo engajadus, o homo de esquerda, desde que se entenda que todo sacrifício do indivíduo em nome da coletividade é opção de esquerda. Desde sempre.
Quem assiste à série de uma enfiada, achando-se perdido de paixão e ódio pelos protagonistas em geral lindos e sensuais, mal sabe porque está torcendo.
O poder da merda em José Padilha
Entre uma tomada e outra de O Mecanismo, José Padilha dirigiu 7 Dias em Entebbe, sobre o sequestro de um avião da Air France, em maio de 1976. Os quatro sequestradores levaram as mais de 240 pessoas a bordo para um terminal abandonado em Entebbe, em Uganda, para pressionar Israel pela libertação de dezenas de palestinos.
A certa altura, a privada das instalações imundas entope e o engenheiro de voo vai consertar enquanto desenvolve uma DR com o chefe dos sequestradores. Enquanto mete a mão na merda saindo do cano, ele diz que um engenheiro vale mais que 50 sequestradores, porque o que importa é garantir condições de vida decentes.
Lembra a mesma cena de O Mecanismo em que o protagonista Selton Mello mete a mão num esgoto na porta da casa, por se negar a pagar o preço cobrado pelo bombeiro que embutia propina para quem o indicou e para o cara da estatal de água e esgoto.
É nessa cena que o personagem tem sua epifania sobre o Mecanismo, a corrupção entranhada de alto abaixo no tecido social do país.
É uma forma muito curiosa de descobrir como que, ontem e hoje, no país ou no mundo, é tudo uma… merda. Ou: vai gostar de pôr merda em cena assim lá em Uganda.
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