Otávio Frias Filho era um candidato potencial a câncer, no sentido de que a doença corrói quem se corrói diuturnamente por uma autocrítica severa.
Era um gênio retraído e frustrado todos dias com o produto que colocava nas bancas, mordido pelas limitações do jornalismo para construir uma verdade precária sob a pressa dos dias.
Jornalista fora de lugar, porque preferia ter se dedicado à academia, ao teatro ou talvez à política, criou o revolucionário Projeto Folha para sistematizar um jornalismo que fosse mais técnico, mais impessoal. Que, na limitação de construir a verdade, fosse pelo menos o mais aberto, independente e apartidário.
Assumiu a Diretoria de Redação com apenas 27 anos e a resistência dos medalhões que torciam o nariz para o filho do patrão que queria implantar métodos menos intuitivos e pessoais de apuração, checagem, autocrítica e correção de erros. Foi o primeiro e único jornal brasileiro a adotar um ombudsman.
Com carta branca do pai, limpou a redação da velharia, liderou e tocou o projeto que tiraria a Folha do seu gueto regional e a projetaria nacionalmente como o maior e mais influente. Tanto para a sociedade quanto para a indústria e a profissão jornalística, que nunca mais foram os mesmos.
Por muito atrelado à universidade e um prazer acadêmico pela provocação, sem tabu para torpedear os costumes e duvidar de todos até prova em contrário, o jornal passou muitas vezes por irritante e engajado com as pautas de esquerda. O que lhe conferiu certo ar de lulo-petismo nos últimos tempos.
Mas a vocação para se abrir e se renovar sempre a desviou do namoro com a parcialidade.
Jornalismo como missão
Uma de suas principais reformulações de início, óbvia vista de hoje, mas que constituía ofensa grave para os veteranos que teve que enfrentar, foi o cronograma de descida da produção dos jornalistas para a oficina.
Era o ululante de que as páginas diagramadas com seus textos deveriam ser enviadas por ordem decrescente de importância, para não sobrecarregar o parque gráfico. As seções mais frias primeiro, mais ou menos assim: Classificados às 17h, Cultura 18h, Economia 19h, Polícia e Geral 20h, Mundo e Política 21h, Esportes e Primeira Página 22h.
Passou a ser tão rigoroso, que a Folha chegou no início ao ridículo de fechar edições no andamento de uma partida de futebol, sem informar o resultado final. Para deboche dos veteranos: “até o fechamento desta edição, o jogo Palmeiras e São Paulo estava em 1 a 0”.
Até então, jornalistas e editores trabalhavam sem preocupação até 22h, 23h ou 24h, e mandavam tudo de uma vez para a oficina, que se virasse para digitar, diagramar, montar, fotolitar, grafar chapas, imprimir e fazer o jornal estar nas bancas às 5h.
Eu estava no Estado de Minas em 1989, cinco anos depois, quando o novo diretor de Redação Mauro Werkema tentava implementar o mesmo, com a mesma resistência da velha guarda.
Era um tempo em que o jornalismo era visto como missão, categoria de pensamento, os jornalistas como intelectuais convencidos de que que a notícia não poderia se submeter às mesquinhas razões do negócio.
Era um tempo em que os chefes das áreas comercial e de Redação sequer se cumprimentavam, temendo influência. Hoje, sentam juntas para planejar os próximos passos.
Inquietação jornalística
Eu tinha uma antipatia típica de inveja daquele jovem que errava sem medo de acertar e cheguei a traduzir isso no perfil que lhe tracei como personagem pernóstico e autoritário do meu livro O Presidente Vai Morrer, que romanceia o drama da posse frustrada de Tancredo Neves a partir do cenário de modernização de um grande jornal.
Talvez, entre outras coisas, por termos a mesma idade e eu a cabeça dos veteranos.
Quanto tínhamos 17, ele já influenciava o pai para abrir a Folha para diferentes correntes de opinião em contraponto ao direitão O Estado de S. Paulo. Tínhamos os mesmos 27 quando ele assumiu a direção de Redação para engajá-la nas Diretas Já que pulsa no meu livro e criar o Projeto que a transformou no que foi e é.
Acompanhei seus passos sempre, li quase tudo o que escreveu no jornal. Com a maturidade, já não o invejava mais, nem seus textos redondos que tentavam abarcar tudo o que se pudesse saber sobre um assunto, num rigor que não deixava uma palavra sobrando.
Percebi então que a afinidade vinha da mesma inquietação de se/me sentir eternamente fora do lugar, na profissão errada, e diariamente insatisfeito com seus/meus resultados. Nossa fome pelo conhecimento, pela introspecção, pela provocação, pelo conflito de ideias e a busca da verdade, num veículo e numa profissão em que ela é precária por natureza. Queríamos ser ensaístas, romancistas, dramaturgos de sucesso.
Por sorte e maldade do destino, eu ainda tenho algum tempo para tentar.
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