Um milionário tetraplégico de gosto refinado e movimentos restritos ao rosto e ao cérebro, dependente de ajuda até para suas necessidades íntimas, seleciona candidatos a enfermeiros. Entre tantos profissionais tarimbados, brancos e educados, opta entretanto por um africano negro, ex-presidiário, grosso e meio violento, que não está nem um pouco interessado no emprego. Como preso de condicional, precisa apenas de uma assinatura para provar que está à procura de ocupação.
Pois, como naqueles filmes em que dois deserdados em mundos opostos vão acabar se entendendo e se amando, os dois personagens de de mundos distintos e a princípio inconciliáveis se aproximam, se entendem e vão construindo uma amizade acidentada e por fim indestrutível, sobre todas as circunstâncias. A ponto de debocharem da ordem e do sistema que os enquadram, “intocáveis” no mundo à parte que construíram.
Na cena que é síntese do ponto a que chegaram em suas afinidades contra esse sistema, se divertem ao avançar todos os sinais em alta velocidade, sabendo que vão enganar a polícia e ainda acabar escoltados até um hospital. Na barreira policial, o patrão na carona finge um AVC e o novo enfermeiro sai do carro aos gritos, mãos ao alto, acusando os policiais de estarem impedindo um socorro inadiável.
– Eu o escolhi porque foi o único que não me olhou com compaixão – justifica o velho ao parente que vem adverti-lo do risco e da inutilidade do auxiliar.
Estamos na França e a frase pode se prestar muito bem a todas as análises sobre a encruzilhada em que está metida a Europa, obrigada a se relacionar contra a vontade com os africanos que vêm chegando do norte da África para tirar os empregos dos brancos e alimentar as pesquisas eleitorais europeias de uma crescente xenofobia.
Pode ser entendida ainda como expiação de uma culpa do branco europeu pelos séculos de exploração de suas colônias africanas – o reconhecimento talvez do direito que os descendentes dos negros explorados tenham de cobrar seu passivo e não olhar o branco explorador com compaixão.
Penas que estejamos também num filme francês e que os franceses torçam o nariz para a carga emocional que faz a festa nos roteiros americanos, como nos similares Conduzindo Miss Daisy e Antes de Partir, sobre, respectivamente, o estreitamento de diferenças entre um motorista e uma velha aristocrática, um enfermeiro e um milionário internados num hospital. Além de não se sentirem obrigados a expor a consequencia de sequencias vitais (e aí?, o que acontece depois que chegam ao hospital?), roteiristas e diretores europeus conseguem alguma graça mas desperdiçam grandes oportunidades de apelo dramático.
Como na cena que tinha tudo para ser clímax, em que os dois se reencontram depois de uma separação. Não há closes, nem lágrimas. Apenas acenos entre risos através de uma vidraça. Tudo muito seco e burocrático. Outra vital, em que o milionário vivido pelo grande ator François Cluzet se deixa trair por seus sentimentos e contorcer os poucos músculos da face sobre os quais tem domínio, no encontro final que vai determinar o futuro de ambos, parece arrancada a fórceps – quase uma concessão arrancada pelo ator dos diretores Olivier Nakache e Eric Toledano.
Vá lá que sejam tomados como elogio. Nossos críticos adoram esse tipo de contenção, a que chamam “economia de recursos”, que pode muito bem ter a ver com o ar blasé e pedante dos franceses, muito apropriado aliás para o mal estar em que vivem com os imigrantes. A cena mais gostosa, em que o enfermeiro requebra sob um som maneiro num salão sofisticado, depois da exibição de uma orquestra de câmera, foi vista pelo crítico da FSP, Inácio Araújo, como “tão demagógica quanto tola – ou seja, ajuda no sucesso do filme”.
Mas o produtor americano Harvey Weinstein, que alavancou esse e outros filmes europeus (como O Artista) nos EUA e no resto do mundo, deve concordar comigo no que diz respeito às imensas possibilidades desperdiçadas. Não à toa que já pensa num remake precoce em produção americana, com Colin Firth (aquele de O Discurso do Rei) no papel do milionário. Eddie Murphy como o enfermeiro?
Aí também não.
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