Em House of Cards, a série da Netflix que se tornou o primeiro sucesso da internet, o deputado inescrupuloso vivido por Kevin Spacey interrompe vez ou outra um discurso ou uma conversa polida, olha para a câmera e conta para o telespectador suas reais intenções camufladas.
– Fulano não era nada disso – interrompendo um discurso elogioso de alguma figura histórica, para a câmera. – Era um bêbado e irresponsável. Mas se eu disser isso, não faz o menor sucesso.
Ou, no meio de uma conversa no Salão Oval da Casa Branca.
– Ele espera que eu recue, mas às vezes é preciso dizer não até para o presidente da República.
O recurso pode parecer simplório, demagógico e paternalista, por desdenhar da capacidade do telespectador de interpretar as intenções do roteiro, como aquele tipo de charge ruim que precisa de legenda para ser entendida. Mas acaba dando um toque divertido ao caráter desse grande personagem sem escrúpulos, que usa e abusa de quem lhe rodeia para atingir seus objetivos.
– Só uso quem eu posso descartar – diz a um lobista de petrolífera a quem, como em vários outros casos, propõe alguma troca para derrubar alguém.
É possível que a dramaturgia política ainda não tenha conseguido, com tanta eficiência e essas legendas de cinismo, ser tão didática sobre a forma como opera esse castelo de cartas pantanoso onde todo mundo usa todo mundo, todas as barganhas embutem uma alta carga de dissimulação e todas as ações políticas, boas ou más, são transformadas em negócios.
– Essa é uma cidade muito incestuosa – diz uma jornalista veterana para a estagiária esperta que está transando com o deputado, casado, para obter seus furos, na Washington que tem o mesmo jeito pantanoso da nossa Brasília.
Raro também que um drama político tenha conseguido traduzir tão bem temas complexos e de difícil tradução para a linguagem rápida da TV, em ação fulminante, personagens exuberantes e diálogos de esgrima. Talvez obra e graça do livro homônimo de Michael Dobbs.
Líder da maioria no Congresso que manipula todos os cordões, o inescrupuloso Frank Underwood foi rejeitado para o cargo de Secretário de Estado e precisa se cacifar para garantir os próximos passos de sua vingança. Que incluem tomar o lugar do vice-presidente e, num futuro, quem sabe, esvaziar o homem mais poderoso do país que lhe negou o cargo logo no início da temporada de 13 episódios, que estreou em fevereiro.
Para começar, ele tem que garantir a aprovação do projeto da reforma educacional que o presidente da República precisa exibir antes do fim dos primeiros 100 dias de governo, apesar das greves dos sindicatos, da desconfiança da imprensa, das dificuldades com a oposição, e, principalmente, das traições dos amigos.
Nesse ponto, aliás, em as disputas se dão no quintal de casa, entre os amigos, é que a série parece mais verossímil. Como em todos os governos em crise, não são os inimigos, a oposição ou a imprensa que causam os estragos. Mas os amigos contrariados ou perigosamente ambiciosos. Os quais é preciso adular, conquistar ou triturar, se preciso.
O que esse líder de governo faz com assustadora competência, sem trair um músculo da face, noutra interpretação arrebatadora de Kevin Spacey.
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