Em setembro de 1862, o jovem de 28 anos Alexandre Bréthel deixou o porto de Bourdeaux para se enfurnar nos confins do Vale do Carangola.
Iria ficar alguns anos para fazer fortuna e voltar logo, mas acabou ficando por 39 anos e construindo certa respeitabilidade de médio fazendeiro e farmacêutico na região de Tombos e Porciúncula, estado do Rio de Janeiro, onde está enterrado.
Seria mais um, não fossem as 68 cartas de 14 a 16 laudas escritas nos primeiros 25 anos para um tio e, depois de sua morte, uma prima, em que traça um panorama político, econômico, cultural e antropológico da região ainda selvagem em que ainda se caçava puris a laço e começava a se urbanizar.
Culto e com pendores de poeta, fazia comentários políticos do Brasil e da Europa, empreendia análises das potencialidades econômicas, comentava obras de Gonçalves Dias e José de Alencar e traçava em letra um quadro da vida cotidiana na fazenda, nas lavouras de café e nos alambiques, que lembra as pinturas de Rugendas.
Tese de Doutorado
Também não seria mais que um nome estranho numa lápide no cemitério de Porciúncula, no estado do Rio de Janeiro, não fosse a história de terem sido encontradas 100 anos depois, no paiol da casa em que morou em Kerampape, região de Cher, por Françoise Massa, professora emérita da Universidade de Rennes 2 — Haute Bretagne.
Autora de dicionários bilíngues e enclopédicos sobre a escrita em São Tomé e Príncipe e Cabo Verde, ela tomou conhecimento delas num congresso de Língua Portuguesa, travou uma batalha para consegui-las e as publicou como objeto de sua tese de mestrado pela Sorbonne, em 1975, a partir de pesquisas complementares.
Cotejou-as com outras cartas trocadas pelos familiares à época, documentos históricos em arquivos públicos e universidades na Bretanha, em Paris e no Rio de Janeiro. Também entrevistou parentes em Minas Gerais e enfrentou as estradas de cascalho e barro da região ainda agreste, no final dos anos 60, em busca dos resquícios da passagem do francês
Queria entender, com interesse de historiadora e possivelmente algum pendor literário, por que esse personagem de romance partiu e por que não voltou.
A primeira resposta é uma combinação de conjuntura, condição pessoal e oportunidade.
Era um tempo em que jovens sem futuro da região árida da Bretanha queriam sumir no mundo e Alexandre Bréthel, um aluno relapso e algumas vezes reprovado no curso de Medicina, era um deles. E o Brasil que vivia os estertores da escravidão começava a se afigurar na Europa como terra das oportunidades, para onde começavam partir grandes ondas migratórias.
O destino de Bréthel se cruzou nessa época com o de Saint Edme de Monlevade, descendente de Jean-Antonine de Monlevade, engenheiro de Minas bem sucedido que se estabelecera no início do Império, com usinas e uma forjaria, na região do Morro Velho.
Hoje uma lápide esmaecida no cemitério de Tombos, sem cartas e sem história, Edme havia se enriquecido com terras no Brasil, no rastro de seu antecedente, e foi o responsável por atrair muitos jovens desesperançados para a nova terra. Como Bréthel.
A resposta para ter ficado vai diluída na sua história de farmacêutico e médico prático respeitado, médio produtor comedido e acabrunhado em sua província.
Não se aventurou a grande proprietário das fazendas de café a perder de vista que cobriam a região até o norte do Rio de Janeiro e estão nos melhores romances do fim da escravidão. Mas também não foi tão pequeno que justificasse jogar tudo para o alto e voltar.
Tradução e encantamento
Não tivesse existido sem a obsessão da historiadora, certamente não chegaria a nós sem a história do encantamento da tradutora.
Jornalista pela UFMG e graduada em Letras pela Universidade Stendhal Grenoble 3, Heloísa Azevedo da Costa descobriu a edição francesa num sebo no Rio de Janeiro, edição de 1977, provocada por uma citação de Paulo Mercadante (Cronica de uma comunidade cafeeira) em suas pesquisas sobre a Zona da Mata.
Apaixonada pela historiografia da região, ela já havia publicado Burgo da Mata, onde encapsula na história da urbanização da sua — e minha — São Francisco do Glória, antes distrito de Carangola, o processo de expansão dessa região do leste do Estado, para onde se expandiram as expedições depois do esgotamento da região aurífera de Ouro Preto.
É como se essa obra (Um francês no vale do Carangola, editora Crisálida) complementasse o que vem querendo dizer sobre o fascínio desse desbravamento tardio e provocasse com alguma potência o seu prazer de usar a tarefa de traduzir para desvendar, compartilhar e multiplicar a historiografia dessa região que ama.
Que se traduz também no encantamento com que a trata a análise límpida e funda como gostam os franceses, rigorosa na pesquisa dos termos em português, embora leve e encantadora como um romance que se lê com prazer.
E com aquele fascínio que se tem diante de uma lápide esmaecida pelo tempo, do quanto de história e historiografia pode se ter por trás dela.
À espera de uma historiadora como Françoise e uma tradutora como Heloísa.
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