O extraordinário Que Horas Ela Volta?, da diretora e roteirista Anna Muylaert, é a mais sutil porrada que já vi na teoria da absorção pacífica da senzala pela casa grande a partir do falso equilíbrio entre a sala e a cozinha.
Revê-lo, me remeteu à grande obra de Gilberto Freyre e à toda a guerra que se estabelece nas redes sociais a cada vez que os nomes FHC e Lula aparecem na mesma frase.
Tem a ver com uma divisão mais funda na alma brasileira de dois lados irreconciliáveis que não tinham ainda encontrado seu espelho e sua oportunidade.
Talvez por conta de nossa jovem democracia, só agora tivemos a oportunidade de ter dois líderes bem sucedidos ainda vivos, convivendo na mesma frase, com características bastantes distintas do espectro político.
É, sim, a primeira vez que um representante legítimo da elite branca, sulista, euro-descendente, patronal e dominadora se encontra com o legítimo representante da elite morena, nordestina, afrodescendente, empregada e, em tese, dominada.
É o encontro, a nível de confronto, diríamos, da Casa Grande com a Senzala, do senhorio com o escravo, do mito formador da nossa alma segundo a tese ainda não contestada de Freyre. Do príncipe com o sapo barbudo, como disse Leonel Brizola sobre a disputa Collor x Lula em 1989, na primeira eleição livre depois da ditadura e de nossa curta experiência democrática.
Tivesse Collor sobrevivido como liderança, poderia ser ele hoje o polo antagônico representando a elite branca. Lula tem o mérito de ser o único que sobreviveu encarnando o outro lado nessa democracia de brancos, mesmo depois de ter ficado parecido com o dono da Casa Grande. Nenhum outro, nem antes e nem depois dele, encarnou o papel.
Daí que os fiéis projetam suas inquietações e fantasias (freudianas?) mais fundas no que acreditam no seu lado e rejeitam com igual potência o que abominam no outro. A elite apaixonada pelo dono da Casa Grande não se reconhece na cara de Lula. A elite apaixonada pelo líder da Senzala não se reconhece na cara de FHC.
Na teoria de Freyre, a Casa Grande acabaria por cooptar a Senzala num processo pacífico e cordial de miscigenação. Até agora, apesar de Lula ter ficado cada vez mais parecido com a elite da Casa Grande que combate, seus seguidores ainda não chegaram a tanto.
Ou não. Sei lá.
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