Nos próximos seis meses, a autora Glória Perez vai se fechar num quarto de hotel e, com a ajuda de três a quatro colaboradores online, vai procurar dar nexo, eficiência narrativa e tensão dramática a uma história de 65 personagens e um sem número de tramas paralelas, que começa numa favela ocupada, passa pelo tráfico internacional de mulheres e acaba na Turquia. Cheia, claro, de disputas, traições e paixões desmedidas. Escreverá cerca de 180 capítulos, o equivalente a um roteiro de cinema por dia.
É mais ou menos o que os americanos, com muito mais recurso e competência, fazem em oito anos. Um dos maiores sucessos da televisão americana, o seriado Mulheres Desesperadas (Desperate Howsewives), por exemplo, teve 192 capítulos entre 2004 e 2011, 24 por ano, apresentados semanalmente. Autores? Foram 29, menos de um episódio por cabeça. O criador e roteirista principal faz um brainstorming , supervisiona a criação e dá a versão final dos episódios escritos por um ou dois autores.
O que certamente explica a abissal diferença de qualidade entre os dois produtos. Como as novelas brasileiras, essa série americana teve reviravoltas de montanha-russa e cenas absurdas, como a da descasada que incendeia a casa da rival ou é desmascarada no meio de um velório. Mas o roteiro envolvente, as cenas enxutas e os diálogos espirituosos são tão bem elaborados que dão às personagens uma consistência construída de grandezas, misérias e transcendência.
Mesmo as cenas absurdas, com vocação de comédia rasgada, acabam sempre fazendo sentido. As personagens são de tal forma bem estruturadas, que nada acontece que não seja produto de sua coerência interna. Mesmo diante de uma baixeza é possível argumentar que, bem, sendo aquela personagem quem é, não surpreende que ela faça isso.
Muito diferente do grude nosso de cada dia, em que o absurdo é quase sempre último recurso à falta de criatividade, o roteiro vacila, os personagens mudam de personalidade ao sabor das reviravoltas e os diálogos, quase sempre, rasos. Jamais se verá num seriado americano, de cenas enxutas e falas instigantes, platitudes tão comuns às conversas de novela daqui: “Ah, que bom que você veio”, “nossa, você está linda”, “não vai me dizer que você não gosta dele…”
Não há nenhum problema que os personagens tenham suas fraquezas e cometam desatinos, porque é dessa matéria falha o barro da raça humana, mas eles não podem ocorrer sem uma cadência de fatos que os justifiquem e façam juz ao desatinado. Absurdos não atrelados à coerência interna da personagem (como da vez que Nina passou a humilhar Carminha), respondem pelo nome de chanchada, em que o riso apelativo quase sempre atenta contra a inteligência do telespectador.
Construir tramas coerentes com personagens consistentes e diálogos grandiosos requer tempo, reflexão e tranquilidade. Que Glória Perez consiga, quase sozinha, construir grandes personagens e atingir até um nível razoável de qualidade sob pressão tão desumana de tempo, se explica pelo seu gênio, da escola de sua tutora, Janete Clair.
Que a Globo tenha montado toda uma grande indústria, que chega a mobilizar 500 anunciantes no último capítulo, em cima de uma base tão frágil, é, porém, um mistério.
Se há alguma escrava nessa novela, não parece ser a Carolina Dieckman, que viajou para ser traficada no primeiro capítulo.
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