Não sei você e estou certo de que Glória Pires não, mas eu sofro de ultracrepidanismo.
É uma síndrome típica dos jornalistas mais antigos que, em em grau avançado, faz de seu portador um “especialista em generalidades”, com a pretensão de saber e opinar sobre tudo.
Minha principal referência de paciente contaminado era Paulo Francis, o mais equipado dos jornalistas da minha geração, capaz de falar com profundidade sobre qualquer assunto, de literatura a psicanálise, de teatro a física quântica, de antropologia a horóscopo.
Era de tal forma arrogante, montado em tanto conhecimento, que se dava à pretensão de tomar como inexistente o que não sabia.
— Se não tomei conhecimento, não deve ter importância.
Também gosto de exercitar aqui e sobretudo em minha página no Facebook uma salada informativa, a “metamorfose ambulante” com “aquela velha opinião formada sobre tudo” de que falava Raul Seixas. Agravada com o enorme prazer de escrever sobre o que não entendo, como lógica do caos e embalsamamento de cadáveres.
Num dos meus textos iniciais para o site Uai, em 2012, me meti a explicar melhor do que as agências internacionais de notícias do que se tratava a partícula de bóson:
>>> Ajudando as agências a explicar o bóson de Higgs
Expandida como epidemia para as redes sociais, onde neófitos de todo o tipo se juntaram a jornalistas prepotentes, está catalogada como hábito na Wikipedia: “o hábito de expressar opiniões ou dar conselhos em assuntos para além do conhecimento próprio”.
Que deriva da pretensão de achar que, se você é bom alguma coisa, pode ser bom em tudo, como explica Pense como um Freak, de Steven Levitt e Stephen Dubner, autores dos best-sellers sobre a economia do cotidiano Freakoconomics SuperFreakonomics.
Eles cruzaram um monte de pesquisas e previsões fracassadas de economistas e metereologistas para explicar as dificuldades que mesmo líderes, autoridades e celebridades têm de dizer que não sabem alguma coisa.
— Na maioria dos casos, o preço de dizer “Não sei” é mais alto que o estar errado.
É um tipo de mecanismo reativo para proteger a reputação, muito bem exemplificado no caso do jogador diante do gol e do estádio cheio, com a responsabilidade de bater o pênalti que vai decidir o campeonato.
As estatísticas indicam que os goleiros saltam em 57% das vezes para a direita e 41% das vezes para a esquerda. Só 2% ficam no meio. Ele terá 7% a mais de probabilidade de acertar se chutar no meio, mas um erro aí, embora estatisticamente mais difícil, é mais vexatório que no canto.
Ali, à direita ou à esquerda da trave, ele pode ser computado à sorte do goleiro. Para proteger sua reputação, ele vai pelo senso comum e a opinião da maioria. E chuta nos lados.
Daí porque vi com a maior simpatia a participação lacônica da atriz Glória Pires como comentarista durante a transmissão do Oscar 2016 pela Globo.
Macaco velho de seu auditório e de sua integridade profissional, não duvidei de que fosse capaz de dizer “não sei” e de ir contra o senso comum, esse ato comprovado cientificamente de coragem que os velhos jornalistas e os ativistas de sofá das redes sociais não são capazes.
Foi só um caso de pessoa errada no lugar errado. Se foi convidada a fazer algo além de sua competência — comentar filmes e não atuar neles —, não deveria ter aceito. Ou feito um mínimo de dever de casa. Tratou-se de leve recaída ultracrepidanista.
Como estou fazendo agora. Pesquisei para falar sobre o assunto que fiquei sabendo só de ouvido, porque, pela primeira vez, assisti todo o evento, sem interrupção na TNT, onde a tradução e a informação fluem sem o palavrório da Globo.
E porque, claro, com o vírus do ultracrepidanismo saltitando nas veias, eu não poderia ficar de fora dessa.
Ana Villela diz
Tenho pensado nisso, inclusive por que saio dando opinião em assuntos dos quais não sou especialista. Mas como seria se só os especialistas pudessem dar opinião? Eles já tem a vantagem de poder discutir com seus pares. E que não é especialista em nada, não comenta mais sobre nada?
Adriana Fernandes diz
Se ela aceitou estar ali, ela tinha por obrigação assistir a todos os filmes e desenvolver crítica sobre eles. Não tem obrigação nenhuma de entender de cinema, então que tivesse a fineza de recusar o convite.
Ramiro Batista diz
Procede sua crítica. A intenção era dizer “fora da competência de comentarista”. Pode-se ser grande atriz e não ter a menor competência para comentar. Mas o texto merece mesmo uma retocada, que farei com prazer, agradecendo a atenção e a correção.
Benny diz
Delicioso texto, como sempre, Ramiro. Mas não entendi a parte do “pessoa errada no lugar errado para comentar assunto fora de sua competência”. A moça é atriz e já atuou no cinema. No mínimo alguma opinião sobre o que disse ter visto ela deveria ter, algo mais robusto ou consistente do que “não sei opinar”…