Aprendi quase tudo sobre literatura e as motivações dos grandes autores com Gabriel Garcia Márquez, dentro e fora de sua enfiada de grandes livros. Sobretudo e principalmente o que subverte as boas regras de gramática, estruturação dos personagens e encadeamento da tensão dramática.
Que não há problemas com frases longas, adjetivos ou conectivos em excesso:
– Macondo era então uma aldeia de vinte casas de barro e taquara, construídas à margem de um rio de águas diáfanas que se precipitavam por um leito de pedras polidas, brancas e enormes como ovos pré-históricos.
Que é possível antecipar a solução dos ganchos sem prejudicar o suspense e a tensão:
– No dia em que o matariam, Santiago Nasar acordou… – diz na abertura da pequena obra-prima Crônica uma Morte Anunciada, onde, na contramão dos bons livros policiais, tudo é antecipado: quem vai morrer, quem vai matar e por quê.
Ou na forma como antecipa o desfecho ao abrir a narrativa das desventuras do primeiro e maior de seus coronéis solitários:
– O coronel Aureliano Buendía lutou 32 guerras e perdeu todas.
O maior dos aprendizados foi a descrição pormenorizada do ambiente. Um bom escritor deve ser capaz de, tanto quanto possível, traduzir aromas e temperaturas, como se tivesse sentindo de novo as sensações de ter estado ali. E fazer o leitor sentir o mesmo.
É quase possível sentir o calor opressivo do quarto cheirando a amêndoas amargas, na abertura colossal de O Amor nos Tempos do Cólera, onde o doutor Juvenal Urbino fora “acudir-se de um caso que para ele havia deixado de ser urgente havia muitos anos”: o cadáver do amigo suicida, fotógrafo de crianças e seu adversário de xadrez “mais compassivo”:
– Encontrou o cadáver coberto com uma manta no catre de campanha onde sempre dormira, perto de um tamborete com a cuba que havia servido para vaporizar o veneno. No chão, amarrado ao pé do catre, estava o corpo estendido de um grande dinamarquês negro de peito nevado e, junto dele, as muletas. O quarto sufocante e caótico, que servia ao mesmo tempo de alcova e laboratório, começava a se iluminar apenas com o resplendor do amanhecer na janela aberta, mas era luz bastante para reconhecer de imediato a autoridade da morte. As outras janelas, assim como qualquer fresta, estavam amordaçadas com trapos e seladas com cartões negros, o que só aumentava a densidade opressiva. Havia uma mesa abarrotada de frascos e garrafas sem rótulos e dois baldes de estanho descascado sob uma lâmpada ordinária coberta de papel roxo. A terceira cuba, a do líquido fixador, era a que estava junto ao cadáver. Havia revistas e periódicos velhos por toda parte, pilhas de negativos em placas de vidro, móveis rotos, mas tudo preservado da poeira por uma mão diligente. Ainda que o ar da janela houvesse purificado o ambiente, ainda restava para quem soubesse identificá-lo o rescaldo tíbio dos amores sem ventura das amêndoas amargas…”
Fora de seus livros, aprendi que é possível amar o artista e sua obra mesmo divergindo de suas posições políticas. Tenho muito mais afinidades com o pragmatismo liberal de seu principal concorrente no boom da literatura sul-americana, Mário Vargas Lhosa, do que com sua utopia socialista. Mas prefiro de longe sua obra.
Passei boa parte dos primeiros anos de deslumbramento com seus livros tentando entender a contradição entre o grande criador de personagens ansiosos de liberdade e o defensor de regimes ditatoriais. E há muitas tentativas de explicação para isso.
Um de seus biógrafos, numa sacada genial, viu em Fidel Castro, por exemplo, a projeção do avô de alma presente em tantos de seus coronéis em seus labirintos e que, entre tantos ensinamentos da infância, lhe deu o caminho dos dicionários.
Acabei por me convencer e me consolar de uma vez para sempre com a ideia de que a literatura de verdade, ao ir fundo nos desarranjos da alma humana, distorce irremediavelmente rótulos e ideologias.
Para ele, é possível que a questão de sua obra tenha a ver menos com liberdade do que com a luta para sair da solidão que fulminou todos os seus personagens, nos cem anos de Macondo e em todos depois deles.
Que talvez se espelhe mais em Úrsula Iguarán, a matriarca dos Buendía e pilar da obra inaugural do realismo mágico, que foi ficando cega na decrepitude de seus últimos anos de luz, mas única na casa capaz de achar objetos perdidos.
Como sua solidão sem remédio a fazia mais atenta que os outros pelos caminhos que seus descendentes percorriam dentro da casa, ela ia percebendo mais do que ninguém os hábitos que faziam com que coisas e pessoas se desencaminhassem.
Meio como Úrsula, de dentro de sua solidão irremediável, Gabriel Garcia Márquez pôde compreender como poucos as limitações, grandezas e misérias da alma humana. Para além da efemeridade de rótulos e ideologias.
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