O que o gestual de Temer em raciocínios opostos tem a ver com o fraseado corporal dos domadores de cães para não assustar o adversário.
A julgar pelos 47 minutos de entrevista que deu a Roberto D’Ávila nesta semana, Michel Temer tem um gestual de girar um ou os dois indicadores para a frente estruturando um raciocínio e dar voltas ao contrário para contrapor um argumento inverso.
Volta e meia, um deles serve de suporte ao queixo, com apoio do polegar, como que para evitar que o rosto vá junto do olhar, que foge do interlocutor, na busca de outro raciocínio que vai desencadear novos giros, para frente e para trás.
Quando não estão nessa pirueta retórica, entrelaçam-se junto aos outros em concha perto do colo, como que para proteger o baixo ventre de algum argumento mais duro. Ou se esticam para compor com as palmas esticadas o gesto de amém.
Esse tricô de mão dupla parece trair um instinto de abarcar sempre os dois lados de uma questão, uma consciência consolidada pelo tempo de que é preciso sempre buscar o que está faltando. Quando falta, é preciso buscá-lo urgente num olhar lateral que vá trazê-lo em nova pirueta para dentro.
Os especialistas em comunicação não verbal chamam isso de “fraseado corporal“, a combinação da intenção com o gesto, incorporada por treino ou inconsciência, que bem ou mal combinados pode ser a glória ou a desgraça de quem quer convencer.
Malcolm Galdwell, o grande repórter da The New Yorker, aprendeu isso analisando com seu microscópio intelectual o gestual de Cesar Millan, o maior domador de cães do mundo, celebridade da TV americana, capaz de dominar o mais feroz e indisciplinado dos cachorros num primeiro contato.
No saboroso e brilhante ensaio O que se passa na cabeça dos cachorros, ele analisa a dança sutil de aproximação entre dominador e dominado, que inclui contenções, avanços e recuos, uso calculado de cabeça, tronco e membros, para eliminar qualquer tipo de ameaça no processo de conquista.
Ele não está ocupando nenhum espaço. E ele anda devagar. Está informando ao cão: “Estou aqui sozinho. Não vou correr. ainda não me apresentei. Aqui estou. Você pode me sentir.” Cesar se agacha ao lado. Seu corpo está perfeitamente simétrico, o centro da gravidade baixo. Ele parece estável, dando a impressão de que não dá para derrubá-lo, o que transmite uma sensação de calma.
Transpondo para o discurso político, ele descobre que Ronald Reagan e Bill Clinton tinham excelente fraseado, aqui entendido com uma capacidade de sedução derivada da boa combinação de fala e corpo, mas que George W. Bush transmitia algo infantil no olhar oblíquo combinado com balanços leves para frente e para trás.
Quando as pessoas dizem que Bush parece um eterno menino, em parte é a isso que estão se referindo.
Me lembrou Ulysses Guimarães, com seus gestos largos e desbragados brigando com a intenção do discurso. Nos melhores exemplos entre nossos líderes de massa mais recentes, estariam Lula e Collor, cujos principais destaques para mim são o nariz empinado de um e o olhar aguçado do outro, sinalizando, pela ordem, voluntarismo e messianismo.
Fernando Henrique Cardoso, que conviveu mais com cobras do que com cachorros e conhecia bem a capacidade de Lula de domar multidões, o chamou certa vez de “encantador de serpentes”.
Fraseado de Tancredo
Michel Temer lembra mais o fraseado de Tancredo Neves, uma contenção que beira a monotonia, mas uma vocação para colchão de espuma entre cristais que foi fundamental na transição do regime militar para o civil.
O suporte no queixo que tateia uma reflexão e desencadeia os saltos triplos do indicador, combinados com mãos que se defendem e se fecham numa conclusão importante, ainda que passageira, traduzem pura contenção, tentativa de lógica e quase uma dança de Cesar Millan para não sugerir ameaça ao adversário.
Deve ser por isso que, por mais que tentasse, a imprensa não conseguiu arrancar dos 47 minutos do programa de D’Ávila uma frase bombástica que ajudasse a colocar fogo no circo.
O máximo que conseguiu de grosseria foi a afirmação de que ceder um helicóptero para a presidente afastada Dilma Rousseff sair fazendo comício contra o que chama de golpe seria “esdrúxulo”, ainda que, bem a seu jeito de mordomo inglês, precedida de um “convenhamos”.
— Convenhamos que seria um tanto esdrúxulo.
A frase veio ao cabo de uma explicação sobre a infraestrutura colocada à disposição da presidente, em dois palácios, num cuidado que revela bem o estilo do presidente, que transborda da fala para os gestos contidos e vice-versa.
Quando Roberto D’A’vila o lembrou, por exemplo, que o escândalo da Petrobras é obra de empreiteiros e políticos, ele devolveu, um giro para frente e outro para trás, que, sim, é verdade, mas alguns dos principais envolvidos eram funcionários de carreira.
Na fase que parecia mais delicada, o entrevistador tentou arrancar-lhe uma crítica ao jeito da presidente de interromper seus interlocutores, causa da famigerada carta que ele a enviou para suplantar o problema. Vazada ao que tudo indica pela própria presidente para constrangê-lo, suscitou à época longa polêmica sobre o que seria sua ingenuidade política.
— Cada um tem o seu estilo — foi o que máximo que se permitiu maledizer a D’Ávila.
Congresso e Brasília
Espécie de acrobata dos dedos com talento involuntário para dançar suave como um mordomo inglês num salão tumultuado, ele parece ter o talento de Cesar Millan para domar cachorros ferozes e indisciplinados na grande briga de rua que chegou para apartear em Brasília.
Com o mesmo respeito para encarar um pitbull como Eduardo Cunha, um buldogue ladino como Renan Calheiros ou uma akita imprevisível como Dilma Rousseff. Sem baixar a guarda para alguns dobermans do STF e um são-bernardo como Rodrigo Janot, enquanto mantém uma distância respeitável de um rotweiller como Sérgio Moro.
E um talento geral para tratar com autoridade e distanciamento a grande matilha do Congresso, num momento em que a sirene da polícia a caminho cria um enorme alvoroço.
Não à toa vem conseguindo aos poucos apascentar o arranca-rabo e aprovar medidas que outro equilibrista não conseguiria nas atuais circunstâncias, como redução de Ministérios, meta fiscal, fim de nomeações políticas em estatais.
Claro que há uma plateia a favor que facilita tudo, mas difícil imaginar um domador com fraseado mais adequado para essa hora.
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