Megalômano brilhante, o ministro foi ingênuo em acreditar que poderia modernizar um país engessado por uma elite dirigente encravada nos seus privilégios
Paulo Guedes tem a megalomania e o brilhantismo dos visionários meio lunáticos que fazem as coisas acontecerem. Se não conseguiu, é porque não depende só disso neste país sem futuro para as boas ideias ou qualquer outra, como se verá.
Ele entrou no governo achando que em um ano acabaria com a dívida interna, de cerca de R$ 4 trilhões à época, para zerar a despesa de R$ 400 bilhões ao ano de juros, o mesmo que o Plano Marshall queimou em uma década para reerguer a Europa depois da crise de 29, numa de suas comparações luminosas.
Arrecadaria R$ 1 trilhão com a venda de todas as estatais, outro trilhão na venda de 1,3 mil imóveis da União e o restante necessário com economias administrativas, desvinculações orçamentárias e as geradas com as reformas tributária e da Previdência.
Ainda pretendia vender a participação da União na Petrobras, um tipo de privatização que nenhum maluco tentou, além de desobrigar o Orçamento de despesas vinculadas, como Educação e Saúde, e as pesadas desonerações dadas à indústria pelos governos petistas.
Na excelente palestra de 90 minutos que deu no encontro anual da XP, em julho de 2019, falava de desinvestir, privatizar e descentralizar para tirar o Brasil de Brasília, como uma fada sininho em sobrevoo sobre a plateia extasiada com o volume de informação, as sacadas geniais e as promessas de um país competitivo e descentralizado.
— Nós somos 200 milhões de trouxas explorados por duas empreiteiras, quatro bancos, seis distribuidoras de gás e uma produtora de petróleo — resumiu depois de fazer o mais fundamentado diagnóstico da debacle de um país que chegou a crescer até 10% ao ano até o fim do regime militar, mas que veio desabando em razão inversa ao aumento da dívida nos últimos 40 anos.
Explorado há pelos menos uns 60 pela elite do funcionalismo público, os piratas privados — o empresariado do capitalismo de estado que avança sobre o orçamento público — e o que chamou de “pântano de Brasília”, os políticos mancomunados com os dois anteriores contra a maioria das mudanças.
— Eles cuidaram muito bem deles — diz neste corte dos dez que tive a paciência de picotar e colocar no ar, diante da alta impossibilidade de editar sem perder informações fundamentais ou sacadas geniais, como a da revolução digital com que pretendia, de forma não menos delirante, sacudir o serviço público.
Veja o vídeo: Desinvestir, privatizar e descentralizar para diminuir Brasília
Acesse também a página com os dez trechos: Como é e pode ser o país da revolução liberal de Paulo Guedes
Ser megalômano e brilhante não impede ninguém, porém, de ser ingênuo. E esse doutor da universidade de Chicago, professor de Economia no Chile à época da sua revolução de mercado e passagens bem sucedidas pelo mercado financeiro, não teve visão suficiente para saber que esse triunvirato não o deixaria vender um tamborete.
Não teve acuidade para perceber que:
- O funcionalismo que escreve os projetos de lei, as sentenças judiciais e os decretos presidenciais tem um poder subterrâneo ao pé do ouvido de parlamentares, juízes e presidentes, talvez o mais forte deles, para combater qualquer mudança que ameace privilégios.
- O empresariado nacional refém de subsídios e isenções iria resistir com bravura a todas as investidas para reduzi-los. No geral, ele acha que o problema só está no inchaço da máquina pública, que combate como única causa.
- Os políticos ouvem servidores buzinando no seu ouvido todos os dias, precisam do dinheiro de caixa dois dos empresários para campanhas e das estatais para empregar aliados e gerar mais apoio eleitoral.
Também não sacou que todas as despesas do país, no Orçamento da União ou fora dele, são engessadas. Como a dívida pública amarrada na dependência tóxica da rolagem de juros que movimenta todo o mercado financeiro, as contas de governadores e prefeitos são amarradas em mais de 90% com gastos obrigatórios e funcionalismo. Por pressão de sindicatos, parentescos, cabos eleitorais e leis de estabilidade, não conseguem demitir um office-boy.
Lula conseguiu a mais dura reforma da Previdência, a de 2003, à custa de uma capacidade de convencimento que faltou a FHC na de 1998 e a Bolsonaro nada de 2019. Mas, na campanha de Dilma Rousseff em 2014, questionava quem pedia mais reformas: “cortar mais o quê?”
Ele tinha a consciência desse engessamento que faz com os governadores hoje, por exemplo, não aceitem reduzir 1 centavo no seu ICMS para tornar gasolina, álcool e diesel mais palatáveis para o consumidor.
O combustível da estatal dinossaura monopolista provê impostos para União, estados e municípios, além de dividendos para seus acionistas (R$ 29 bilhões no último trimestre, dos quais 11 bi para o governo federal), como uma grande vaca leiteira que mantém toda elite governamental e financeira feliz, menos o cidadão que toca seu carro, seu táxi/uber ou sua empresa.
O megalômano brilhante ingênuo não sacou sobretudo o fator Bolsonaro, que iria desautorizá-lo desde as primeiras dificuldades. Não só contaminando suas propostas de reformas com interesses paroquiais, mas abatendo por ação ou traição cada um dos 14 luminares que havia convencido a ir para o governo.
Começou com Joaquim Levy e terminou com Castello Branco, defenestrados de forma humilhante do Banco Central e da Petrobras, duas pontas de uma queda em dominó que esfacelou um grupo cheio de ilusões vendidas por sua verve de megalômano:
— Vamos fazer a nossa revolução liberal depois de 30 anos de governos social democratas.
A medalhões da produção e do mercado financeiro, como Salim Mattar, Pedro Guimarães ou Marcos Cintra, desconfiados da possibilidade de fazer um governo liberal com um sujeito corporativista de declarações radicais como Bolsonaro, ele dizia ter carta branca. A do “posto ipiranga”, na imagem frequentemente utilizada pelo presidente.
— Bolsonaro tem maus modos mas bons princípios, num país em que sempre tivemos políticos com bons modos e maus princípios.
Com o tempo, ele foi tomando o choque de realidade com que Brasília coopta ou expulsa os incautos. Agravado pelo azar da pandemia, que adiou tudo, embora, pela nossa tradição, duvido de que o resultado das reformas teria sido diferente sem ela.
Acabou se tornando um Pazuello na economia, no sentido de subserviência e dobra da espinha às conveniências, mas ganhando também algum jogo de cintura para rolar a realidade.
Ele aprendeu, por exemplo, que são tantos os remendos para atender tantos interesses que as reformas sempre saem pior do que entram no Congresso. E já fez muito bem em ameaçar recuar em mais de uma, como a última do Imposto de Renda, temendo, com razoável tirocínio, pela piora.
Último grande exemplo foi o da lei que pretendia eliminar — e acabou legalizando — os penduricalhos que o funcionalismo, sobretudo no Judiciário, foi inventando para ultrapassar o teto de R$ 33 mil em direção a salários de mais de R$ 100 mil. A grande imprensa, tão ingênua quanto Guedes a respeito das patranhas do serviço público, aplaudiu como moralizadora.
Da mesma forma, conseguiu, não se sabe como, cavar um sentido de lealdade com Bolsonaro, que ainda o escuta e o obedece. Ganhou muitas paradas internas nas muitas vezes em que bateu na mesa contra tentativas de fatiar seu ministério para atender à velha sanha do Centrão ou desidratar ainda mais algumas propostas.
Fosse outro, já teria sido defenestrado de forma humilhante, como tantos outros, há muito tempo. Como e por quê permanece no governo, depois de tanto fiasco e diminuindo cada vez mais de tamanho, é um mistério. Disse mais de uma vez que tem uma responsabilidade pública. Com sua megalomania até divertida, já disse mais de uma vez que a coisa desandaria ainda mais sem ele.
Vai tocando o governo possível do país possível, reduzido a uma sombra do que se apresentava. Um tipo de contabilista chamado às pressas para arranjar algum recurso emergencial. Remaneja uma rubrica daqui, muda outra pra ali, dá alguma opinião desastrada de contador que só vê gráficos.
Seria interessantíssima uma nova palestra no XP, para falar com a verve de sempre sobre seus fracassos. Não sei se daria cortes tão bons quanto os da anterior.
Já se disse que talvez lhe tenha faltado experiência prática, como a de um Salim Mattar, que também tirou o cavalo da chuva a tempo depois que viu que, além de um tamborete, não venderia um prego.
Economista de universidade, professor e pesquisador da FGV, Guedes nunca produziu nada que se pudesse embrulhar ou encaixotar. Embora isso nunca tenha sido pré-requisito para ser ministro da Fazenda no Brasil, onde empresários não querem ou não são bem vindos no governo, diferente dos Estados Unidos.
Pelo contrário. Empresários sempre quebram a cara ou são desmoralizados pela patrulha virulenta do anti-capitalismo quando se intrometem a passar para o lado de dentro do balcão, em algum cargo ou conselho honorífico que os presidentes criam de vez em quando para mostrar disposição capitalista.
Professores e cientistas sociais que vieram desse pó têm tido mais sucesso no aprendizado de lidar com o engessamento, as crenças e os interesses que embalam nosso estamento burocrático, nosso empresariado sub-capitalista e nossos políticos de Centrão. Até achar que estão mudando o país, à medida que vão diminuindo de tamanho.
Há algumas semanas, nosso contundente Ricardo Kertzman escreveu que Guedes estava mais para um psolista de carteirinha como Guilherme Boulos, diante das evidências de que pretendia fazer socialismo com dinheiro dos outros na questão da taxação dos dividendos dos pobres autônomos que criaram a sua microempresa de serviços.
Me remeteu a um curso do Instituto para Reforma das Relações Estado e Empresa (IRRE), organizado pelo mesmo Boulos com palestrantes da esquerda nacional e internacional, sob o título “Soluções Para o Brasil”.
Pensando em Kertzman, me perguntei que soluções ofereceria ao país um socialista renitente como esse, apologista de invasão de propriedades, que demoniza empresários e livre iniciativa, só visualiza o mundo do ponto de vista da luta de classes e preconiza uma sociedade toda organizada, patrocinada e dirigida pelo Estado?
Mas, hoje, pensando bem e contemplando a obra possível de Guedes do país possível, diante de nossa tradição e dos desejos atávicos de nossas classes dirigentes, acho que não haveria ministro da Fazenda mais adequado. Para qualquer governo futuro.
Publicado no Estado de Minas, em 31/8/2021
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