Bolsonaristas e lulistas radicais da esgotosfera que alimentam a polarização combatem o “ouvir os dois lados” com que poderiam ajudar a combater a combustão
Nada tenho a acrescentar ao que Ricardo Kertzman escreveu aqui sobre a responsabilidade pregressa e atual de Bolsonaro e Lula pelo clima de polarização que puxou o gatilho do cretino que invadiu uma festa privada em Foz do Iguaçu, com os resultados conhecidos.
Posso tentar agregar algo sobre a responsabilidade presente e futura da súcia de radicais de cada lado que, sob o manto deles, continuam alimentando a disputa e não parecem interessados em contribuir para amenizar o clima.
Ela bate ponto na muito bem chamada esgotosfera, a fração das redes sociais que debate política ou costumes e tem no Twitter o seu principal chiqueiro de luta, a cada evento desse porte.
Hordas de bolsonaristas e lulistas em bolhas próprias chamadas hashtags comparecem a cada polêmica com paus e pedras retóricas, sangue nos olhos e nos dedos, para relativizar, atacar seus adversários e defender seus respectivos mitos.
Não são idiotas anônimos. Navegue e você encontrará todos os nomes que você costuma ver no noticiário, de um e outro lado. Carla Zambelli versus Gleisi Hoffman, Carluxo contra Jean Willys, Bia Kicis ante Randolfe Rodrigues.
Há também um bando de jornalistas, também engajados de um e outro lado, que você reconhecerá pela cor política dos veículos que os sustenta ou por já terem tido seus tempos de glória em veículos profissionais. Também jornalistas sérios que não resistem a assumir um lado na tentativa de desqualificar o outro.
Nessa guerra de irracionalidade movida a propaganda e manipulação, a primeira vítima é a verdade e qualquer tentativa de equilíbrio num título ou num post é vista como omissão, cumplicidade ou engajamento disfarçado.
Não é um terreno para isentos bem intencionados ou para quem queira tatear a luz dos dois lados. É o fim definitivo do isentão que, mal ou bem, tentava olhar com generosidade as razões do outro. Todo mundo é suspeito e visto com perversidade.
É quase impossível que um título dos veículos do jornalismo profissional que essa banda podre chama de “velha” ou “antiga” imprensa escape de um escrutínio severo para acusá-los de parcialidade.
Inventaram agora o “doisladismo” empenhado numa “falsa simetria” que esconderia seus interesses ao dar falso peso igual a fatos, pessoas e crimes que julgam incomparáveis. Como colocar na mesma balança a tendência totalitária de Bolsonaro e o de Lula ou o grau de corrupção de um e de outro.
Sou um crítico antigo do “ouvir o outro lado” que perdurou uma vida como grande desculpa do jornalismo preguiçoso para publicar o que queria e transferir a responsabilidade para o que e quem não foi ouvido ou apurado devidamente.
O tempo e as redes sociais mostraram quão falsa era essa isenção e o quanto camuflava de opinião no jogo das opiniões seletivas que publicava. E ensinaram que é possível ser honesto, ter um lado, desde que não se esconda e se camufle os demais.
A internet e as mídias sociais que abateram a arrogância e os alicerces metodológicos e também financeiros dessa imprensa, em boa hora, estão contribuindo entretanto para ressuscitá-la como último bastião possível, ainda que precário, da busca de equilíbrio.
Por necessidade de sobrevivência e até mesmo para responder ao julgamento severo e cancelador desse antro, acabou evoluindo para um modelo menos investigativo e mais declaratório, mas também mais cuidadoso.
Nele, a informação é menos produto de investigação do que sistematização do máximo que é possível concatenar entre o que está disponível na rede. E a denúncia está mais tímida para não avançar sobre informações ainda precárias que possam ser modificadas a qualquer hora.
É um novo e ainda um tanto quanto débil novo “doisladismo” que chegou à cobertura dentro do razoável e do possível no acontecimento trágico deste fim de semana.
Apesar de massacradas, não vi como poderiam ter sido diferentes ou melhores as manchetes da primeira hora, dando conta com poucas variações de que um bolsonarista havia invadido uma festa de aniversário e matado um petista.
É curioso que uma turba de pessoas inteligentes que chegou a questionar a priori até a legitimidade da delegada com base nos poucos minutos em que ela apareceu no Fantástico (não vi como a cobertura do programa, também bombardeada, poderia ter sido melhor) se ache com autoridade para criticar os jornalistas das redações.
Ainda que pressionados por suas limitações de tempo, seus compromissos ideológicos e suas balanças morais para não conspurcarem suas matérias, são os que ainda trabalham sob parâmetros de respeito e composição das divergências.
E ainda os que podem ensinar contemporização e um pouco de generosidade a esse bando de atores importantes, envolvidos em propaganda e má fé, que contaminam o ambiente ao emular o que os dois grandes responsáveis do topo sugerem.
Se tivessem a humildade de aprender com essa velha imprensa a catar os dois lados de cada questão, reconhecendo suas limitações mas suas vontades de buscar a verdade, certamente contribuiriam muito para reduzir a combustão da hora.
É um desafio gigantesco. Em nome de um ambiente mais generoso de compreensão da razão alheia por uma troca mais saudável, teriam que abrir mão da crença de que o aumento de cliques e compartilhamentos só é possível com agressão.
E um preço alto a pagar. Teriam que ter a coragem e a dignidade de considerar perda de votos, no caso dos políticos, de dinheiro no dos influencers e de falso prestígio no dos jornalistas.
Mas podem se surpreender. Até onde percebo, a sociedade está com saco cheio disso tudo.
>Publicado no Estado de Minas, em 16/7/2022
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